São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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RÚSSIA

Ênfase recente de Putin no bem-estar social e no controle político mostra insegurança do governo em relação à sucessão

Medo de levante à ucraniana ronda o Kremlin

NEIL BUCKLEY
STEFAN WAGSTYL
DO "FINANCIAL TIMES"


Putin admitiu que é "apenas natural" que quem ocupa o poder queira conservá-lo e reconheceu seu próprio desejo de continuar a exercer um papel no país. "Pretendo deixar o Kremlin, mas não a Rússia"
Vladimir Putin apareceu com aspecto confiante ante uma platéia formada pela elite política da Rússia, neste mês, quando anunciou planos para injetar US$ 4 bilhões adicionais na educação, na saúde e no setor habitacional em 2006. A missão, segundo ele, é garantir "uma melhora substancial da qualidade de vida dos russos."
O discurso marcou uma tentativa de atribuir uma cara mais humana ao governo: em lugar de apenas guardar os bilhões de dólares que os altos preços do petróleo estão levando à Rússia, gastá-los com serviços e a recuperação de infra-estruturas dilapidadas.
Mas políticos de todos os partidos o viram como algo mais: a primeira iniciativa de uma campanha para assegurar a permanência do regime atual no poder após as eleições legislativa de 2007 e presidencial de 2008. Ela pode acontecer sob a égide de Putin, se puder ser encontrado um modo de driblar o dispositivo constitucional que proíbe os presidentes de exercer três mandatos, ou sob um sucessor escolhido por ele.
De certa maneira, a campanha eleitoral está em curso há meses -desde que a "revolução laranja" na Ucrânia, em dezembro, viu um líder oposicionista, Viktor Yushchenko, derrotar o herdeiro escolhido pelo presidente em final de mandato, após eleições contestadas e protestos populares.
Abalado pelos resultados de tudo isso, o Kremlin começou a fazer tudo o que estava a seu alcance para assegurar que o mesmo não ocorrerá na Rússia. Ele modificou as leis eleitorais para complicar a vida dos partidos oposicionistas, fundou um movimento de jovens pró-Kremlin, fortaleceu seu domínio sobre a mídia, começou a reprimir as ONGs e tomou medidas para neutralizar qualquer potencial candidato de oposição.
Tudo isso está trazendo à tona as perguntas que predominam durante o que resta do segundo mandato de Putin: será que pode acontecer uma mudança de regime na Rússia, em 2008, semelhante à que se deu na Ucrânia ou na Geórgia? E, se isso acontecesse, quem subiria ao poder?
A insistência crescente dos membros do círculo mais próximo ao presidente em conservar-se em seus cargos já está tendo conseqüências sobre as políticas interna e externa. O governo está hesitando em empreender mais reformas liberais depois que, em janeiro, as mudanças mal administradas nos benefícios sociais levaram aposentados às ruas.
Tudo indica que as medidas populistas vão se intensificar, lado a lado com as disputas internas no Kremlin sobre a permanência de Putin e sobre sua sucessão. Banqueiros e empresários dizem que a incerteza da paisagem política pós-eleitoral está dificultando a obtenção de financiamento para projetos que vão além de 2008.
Fora das fronteiras russas, o Kremlin está redobrando seus esforços para fortalecer os presidentes em exercício nos países que integravam a URSS e para fazer descarrilar o trem democrático que passou pela Geórgia e pela Ucrânia. Putin também está determinado a aproveitar ao máximo o período durante o qual a Rússia vai exercer a presidência do G8, no próximo ano -uma oportunidade ideal para bancar o estadista diante do público russo.
Nada será deixado por conta do acaso. "2008 talvez seja decidido não apenas nas eleições, mas nas ruas", diz Serguei Markov, um consultor político próximo do Kremlin. "O clima reinante será muito importante, e pode acontecer uma primeira tentativa de organizar uma "revolução laranja"."
Por enquanto, esse cenário parece pouco provável. Putin continua a ter popularidade imensa, sendo que, na Ucrânia, Leonid Kuchma tinha pouca popularidade para transmitir a seu sucessor preferido. Diferentemente da Ucrânia, a oposição liberal russa não conseguiu até agora unir-se em torno de um candidato digno de crédito. E a oposição russa não pode, como fizeram as oposições na Ucrânia e Geórgia, alimentar-se do desejo popular de independência maior em relação à Rússia.
A economia joga a favor de Putin, com a receita petrolífera alimentando o mais longo período de crescimento em décadas. Do quê, então, é que o Kremlin tem medo? Talvez seu maior problema seja que o regime se baseia na credibilidade pessoal de Putin.
Pesquisas mensais mostram que o índice de aprovação do presidente continua perto de 70%. Mas a de seu governo caiu para 29%. Segundo os números mais recentes, 52% disseram que "a Rússia está seguindo o rumo errado", sendo que 34% se disseram satisfeitos com o rumo do país.
Vários fatores podem explicar esse fato. A riqueza petrolífera vem sendo distribuída de maneira muito desigual. Como observou Putin na semana passada, 25 milhões de russos ainda vivem abaixo da linha de pobreza. "As pessoas estão começando a se dar conta de que o país é hoje muito rico e a querer uma parte da riqueza", diz Maarten Pronk, executivo do Rabobank na Rússia.
Outro problema é que falta à equipe de Putin alguma ideologia de fato, além do objetivo de superar o caos prevalecente sob o governo de seu antecessor, Boris Ieltsin, e substituí-lo pela estabilidade -objetivo esse que já foi, em grande medida, alcançado. O Partido pró-Kremlin Rússia Unida, que domina o Parlamento russo, tem pouca ideologia exceto a da lealdade a Putin.
A insegurança do Kremlin talvez possa ser explicada por razões mais profundas. O próprio Putin foi criado politicamente pela "corte" de Ieltsin e dos oligarcas ricos. O ex-espião da KGB foi conduzido ao Kremlin por uma administração política hábil. A fé que sua própria equipe deposita no poder das técnicas de administração política pode significar que seus integrantes exageram a capacidade da oposição de criar um candidato à Presidência, sobretudo com ajuda externa -dos EUA-, que eles acreditam ter sido crucial no caso da Ucrânia.
"A oposição está se unindo, reunindo forças de todos os tipos contra o presidente e o partido Rússia Unida", diz um funcionário do Kremlin, fornecendo um indício da mentalidade vigente em seu interior, segundo a qual o governo estaria assediado.
Putin já excluiu várias vezes a hipótese de mudar as leis. O presidente fez sua declaração mais categórica até agora a esse respeito a um grupo de jornalistas e acadêmicos estrangeiros, neste mês. "Não vou me candidatar à Presidência em 2008", disse.
Entretanto, ele admitiu que é "apenas natural" que quem ocupa o poder queira conservá-lo e reconheceu seu próprio desejo de continuar a exercer um papel no país. "Pretendo deixar o Kremlin, mas não a Rússia", ele falou.
No que diz respeito a 2008, o cenário mais provável é que os assessores mais próximos de Putin escolham um sucessor e torçam para que a popularidade do presidente o contagie. Essa hipótese encerra riscos. As facções principais no Kremlin -os "siloviki" (integrantes e antigos integrantes dos serviços de segurança), os liberais econômicos e os tecnocratas burocráticos- podem brigar entre si na hora de procurar um candidato comum. Eles podem até mesmo dividir-se, na medida em que ambições pessoais poderão se mostrar mais fortes do que as lealdades já estabelecidas.
Enquanto isso, um candidato oposicionista pode conseguir combinar apelo popular com a promessa de conduzir o país numa direção diferente, de tal modo que viria a representar uma ameaça. Assim, o Kremlin embarcou num esforço sistemático para sufocar os mecanismos e as organizações capazes de levar ao surgimento de um candidato rival.
O movimento de jovens pró-Kremlin criado pela administração já virou um contrapeso ao possível surgimento na Rússia de grupos ativistas estudantis semelhantes ao Pora e ao Kmara, respectivamente da Ucrânia e da Geórgia. Amplamente visto como criação de Surkov, e dotado de um nome -Nashi (ou nosso)- de tom distintamente nacionalista, o grupo já atraiu dezenas de milhares de pessoas a suas manifestações. Seu principal papel parece ser o de lotar as ruas de Moscou no caso de uma eleição contestada e de reprimir quaisquer levantes contrários ao governo.
Além disso, as autoridades abriram ação criminal contra a única figura que até agora deu sinais de ser capaz de unir a oposição e obter apoio popular: Mikhail Kasyanov, que Putin destituiu do posto de premiê em fevereiro de 2004. Neste mês, Kasyanov confirmou sua intenção de candidatar-se à Presidência. Em julho, porém, virou alvo de uma investigação sobre a suposta apropriação indevida de uma "dacha" (casa de campo) do governo, valendo milhões.
Finalmente, a administração instituiu mudanças na legislação eleitoral russa, mudanças que estão provocando a ira dos políticos liberais. Entre outras coisas, os observadores e jornalistas nacionais independentes foram proibidos de assistir à contagem de votos. A presença de observadores internacionais será permitida apenas se eles vierem atendendo a convites. "O Kremlin prepara a falsificação dos resultados eleitorais", diz o deputado liberal independente Vladimir Ryzhkov.
Um alto funcionário do Kremlin insiste em que o regime não vai recorrer a métodos anticonstitucionais para se manter no poder, mas que tampouco vai permitir que grupos oposicionistas o façam. "Podemos ganhar ou podemos perder", disse o funcionário. "A terceira possibilidade seria uma transferência ilegítima do poder -para as nossas mãos ou para outras. Mas não vamos permitir que isso aconteça."
Tradução de Clara Allain

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