São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2004

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COMENTÁRIO

País entra em período sinistro de sua história

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

É estranho, não? Nunca houve guerra civil no Iraque. Jamais ouvi uma só palavra de animosidade dita entre sunitas e xiitas no país.
Apesar de ser uma organização formada exclusivamente por sunitas, a Al Qaeda nunca fez qualquer ameaça aos xiitas. No entanto, as autoridades de ocupação americanas vêm há semanas lançando avisos sobre guerra civil. Elas chegaram ao ponto de exibir uma carta que teria sido escrita por um agente da Al Qaeda, advogando um conflito entre sunitas e xiitas. Jornalistas normalmente de mente sã aderiram ao tema com entusiasmo. Guerra civil.
Não sei bem por quê, mas não acredito.
Não, não acredito que os americanos tenham sido responsáveis pela carnificina de ontem em Bagdá e Karbala, apesar dos gritos acusatórios lançados por sobreviventes iraquianos. Mas me preocupo, sim, com os grupos de exilados iraquianos que pensam que seus próprios atos podem gerar o que os EUA querem: um medo de guerra civil tão intenso que os iraquianos acabem concordando com qualquer plano que Washington possa anunciar para a Mesopotâmia.
Penso no serviço secreto francês na Argélia, em 1962, detonando bombas entre a comunidade argelina muçulmana na França, colocando muçulmanos contra muçulmanos na Argélia, levando à morte de meio milhão de pessoas.
E, sinto dizer, também penso na Irlanda e nas bombas detonadas em 1974, que, com o passar dos anos, parecem ter vínculos com a segurança militar britânica.
Mas está claro que as bombas em Karbala e Bagdá foram coordenadas. O mesmo cérebro estava por trás delas. Terá sido um cérebro sunita? Quando o porta-voz das autoridades de ocupação sugeriu, ontem, que as explosões tenham sido obra da Al Qaeda de Osama bin Laden, devia saber o que estava dizendo: que a Al Qaeda é um movimento sunita e que as vítimas eram xiitas. Não é que eu não acredite que a Al Qaeda seja capaz de promover um banho de sangue como o de ontem. Mas me pergunto por que os EUA estão dando tanto destaque ao perigo de guerra civil.
Experimentemos voltar o espelho para o outro lado. Se um movimento sunita violento quisesse expulsar os americanos do Iraque -e existe, de fato, um movimento de resistência que luta com muita crueldade com exatamente esse objetivo-, por que ele quereria voltar a maioria xiita do Iraque contra ele?
E os EUA vêm falando sobre centenas de combatentes "estrangeiros" que estariam atravessando as fronteiras. Mas quem são os homens que detonam as bombas? Onde estão suas identidades? De que países vêm? E, como a polícia iraquiana não pára de anunciar que encontrou passaportes dos homens-bomba, será que podemos saber seus números?
Estamos ingressando num período sombrio e sinistro da história iraquiana. No entanto, embora a autoridade de ocupação deva enxergar a guerra civil como a última perspectiva que gostaria de contemplar, não pára de gritar "guerra civil", e isso me preocupa. Especialmente quando as bombas tornam a possibilidade real.


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