São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2000


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RELIGIÃO

Pio 9º condenou a liberdade de expressão e o pluralismo religioso; defensores dizem que consolidou o papel de Roma

João Paulo 2º beatifica papa controverso

PAULO DANIEL FARAH
EDITOR-ADJUNTO INTERINO DE MUNDO

O papa João Paulo 2º beatifica hoje dois de seus antecessores, com perfis e posturas teológicas bastante divergentes. De um lado, o progressista "João (23), o Bondoso", que convocou o Concílio Vaticano 2º e favoreceu a inserção da igreja no mundo moderno. No extremo oposto, o ultraconservador Pio 9º, cujo lema era: "Eu sou a igreja, eu sou a tradição".
Durante o pontificado mais longo da história (1846-78), Pio 9º condenou a liberdade de expressão e o pluralismo religioso, reforçou a autoridade eclesiástica e proclamou o dogma da infalibilidade papal, segundo o qual os sucessores de são Pedro estariam isentos de erros. No entanto, quando ele morreu, em 1878, liberais italianos teriam tentado lançar seu corpo em um rio.
Grupos judaicos protestam contra a beatificação de Pio 9º. Dizem que ele apoiou o confinamento de judeus no gueto de Roma, proibiu que eles testemunhassem contra cristãos em processos judiciais e ordenou a retirada de um menino de 6 anos de sua família para criá-lo nos moldes católicos (leia texto abaixo).
"Ele (Pio 9º) causou sofrimentos demasiados.Arrebataram-no da família ainda criança (em 1858)", diz Elena Mortara, parente de Edgardo Mortara.
"A ferida do caso Mortara ainda repercute em minha família e em nossa comunidade (judaica)."
"Uma beatificação excessiva, obra de um reduzido grupo de ultraconservadores", afirma o semanário católico "The Tablet". "Só pode ser uma medida política, destinada a oferecer um contrapeso conservador e reacionário à beatificação de João 23."
Pio 9º rechaçou como "loucura e praga" qualquer idéia favorável à liberdade de opinião -sustentava que "o erro não tem direitos"-e repeliu a separação entre igreja e Estado. Teólogos ligados à revista religiosa "Concilium" pediram ao líder da Igreja Católica, sem sucesso, que ele abandonasse a idéia da beatificação.

Em defesa de Roma
Seus defensores alegam que ele procurou consolidar o papel central de Roma, num momento em que a igreja perdia territórios e tentava se manter em pé, em meio ao anticlericalismo vigente. Na Alemanha, foi chamado de "papa mártir", por combater as sucessivas leis contra a igreja. Elogiam ainda seu impulso às missões.
João Paulo 2º declarou que seu antecessor atuou "numa época difícil", em que a igreja enfrentava ataques de nacionalistas. Na opinião do monsenhor Carlo Liberati, os que se opõem à beatificação "estão julgando com a mentalidade de hoje fatos de 150 anos atrás".
"A beatificação de Pio 9º vai suscitar muita reação, mas o fato de vir junto com a de João 23 reafirma a polivalência, a complementaridade dos aspectos da igreja", disse à Folha o antropólogo Pierre Sanchis, membro do Instituto Superior de Estudo das Religiões.
"Houve uma substituição da figura do papa Pio 12 pela de Pio 9º. A beatificação de Pio 12 (acusado de omissão em relação ao nazismo) possivelmente chocaria o mundo judaico. Pio 9º foi escolhido para evitar as controvérsias em torno dele", afirma Sanchis, 71.

"João, o Bondoso"
João 23 (1958-1963) convocou o Concílio Vaticano 2º (1962-65), assembléia que não se destinou a condenar erros, mas adaptar a igreja ao mundo contemporâneo. Aprovou a utilização de outras línguas além do latim na liturgia e permitiu que o celebrante da missa ficasse de frente para os fiéis.
Incentivou a atuação dos leigos e disse ser a favor de que "o vento da história limpasse a poeira acumulada sobre a cadeira de Pedro". Encíclicas como "Mater et Magistra" e "Pacem in Terris" atualizaram a doutrina social católica.
O papa João 23 apoiou abertamente o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, caminho seguido por João Paulo 2º, 80, cujo pontificado é o mais longo do século 20 -iniciou-se em 1978.
Ideologicamente conservador, o atual papa faz uso de meios modernos, incluindo a Internet, para melhorar a imagem da igreja. Reuniu mais de 2 milhões de fiéis para um "Woodstock católico", em Roma, no mês passado. Só ao final recordou que a igreja não aprova relações sexuais antes do casamento e que o sexo deve ter fim reprodutivo, por exemplo.
"Simbolicamente, a beatificação é um gesto muito forte. A visão política do papa é de grande sofisticação. Ele atesta a afirmação dupla da igreja no mundo moderno. O sentimento católico tradicional sempre viu Pio 9º como um defensor das prerrogativas da igreja", afirma Sanchis. "Pio 9º condenava o liberalismo, que hoje aparece para nós com vários matizes. Alguns condenáveis para muitas pessoas, como o neoliberalismo."


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