São Paulo, sábado, 03 de dezembro de 2005

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ANÁLISE

Crença na punição bíblica sustenta pena

Ellen Ozier/Reuters
Na Carolina do Norte, manifestantes protestam contra a milésima execução nos EUA desde 76


MICHAEL CONLON
DA REUTERS, EM CHICAGO

Um dos maiores índices de homicídio no mundo, a tradição da "justiça de fronteiras" (a justiça sumária do tipo que era aplicada no Velho Oeste) e uma crença inabalável na punição bíblica são fatores que vêm ajudando a manter a pena de morte nos EUA, dizem especialistas, numa época em que boa parte do mundo moderno a rejeita.
Diante do repúdio internacional e da tendência que levou 105 países a abandonarem a pena de morte, os EUA continuam a adotá-la, e, ao lado da China, do Irã e do Vietnã, são responsáveis pela maioria das execuções.
Na manhã de ontem Kenneth Lee Boyd tornou-se o milésimo executado desde que os EUA readotaram a pena de morte, em 1976, após um hiato de dez anos. Antes disso, desde 1608, quando ainda era colônia, a terra que viria a tornar-se os EUA registrou mais de 14 mil execuções legais -e um número desconhecido de outras por justiceiros.
"Em relação à Europa, temos um índice de homicídios muito maior", disse Tom Smith, do Centro de Pesquisas de Opinião Nacional da Universidade de Chicago. Segundo ele, as pesquisas demonstram que o apoio popular à pena de morte aumenta e decresce segundo a taxa de homicídios.
Embora ela venha caindo nos últimos anos, ainda está entre as mais altas do mundo, embora perca para a Rússia, a África do Sul, a Colômbia ou o México.

O preconceito e a Bíblia
Outros fatores são mais difíceis de quantificar, disse Smith, mas é fato que os EUA possuem a maior concentração de cristãos evangélicos "que acreditam no pecado, na punição do pecado e que a pena capital seja ordenada pela Bíblia". Segundo Smith, "essa tradição é mais forte nos EUA do que em qualquer país europeu" e é acompanhada da tradição, que vem dos tempos em que a fronteira do Oeste americano estava sendo desbravada, da "justiça rápida e certeira para lidar com os criminosos; quem capturava um ladrão de gado o enforcava".
Há um senso muito forte de individualismo pelo qual são as próprias pessoas, e não a sociedade, as culpadas por seus maus atos.

Para analistas, criminalidade maior que a da Europa, peso da religião e individualismo explicam por que a pena continua

Smith disse que é muito mais difícil provar que o racismo seja um fator que também faz parte da equação, embora as estatísticas comprovem que os negros no corredor da morte estão em número muito desproporcional em relação a sua participação na sociedade americana, que é próxima dos 14%.
Mas Deanne Bonner, professora de assistência social na Universidade de Boston, disse que o "histórico de racismo" nos EUA é, sim, um fator de peso.
"Muitos acreditam que a pena de morte tenha tomado o lugar dos linchamentos. A imensa maioria dos executados é composta de homens negros."

Racismo institucionalizado
Para ela, "não é apenas o racismo, mas o fato de não termos conseguido combater a institucionalização do racismo", na educação e na pobreza. "Isso faz com que as pessoas que cometem crimes sejam vistas como menos humanas", sem falar que o histórico de imigração americano "nos legou um senso mais fragmentado de nossa humanidade comum".
O defensor dos direitos civis Jesse Jackson concorda com essa análise. Disse à Reuters que o sistema americano "prejudica inerentemente os pobres, negros ou pardos". "Jesus foi vítima da pena de morte. Um sistema falho matou um homem inocente. Precisamos refletir sobre isso."
Rick Garnett, da Escola de Direito da Universidade Notre Dame, afirmou que os EUA apresentam mais homicídios do que outras potências ocidentais. "Simplesmente não sabemos o que esses outros países teriam feito se tivessem sofrido índices de homicídio semelhantes, e também homicídios divulgados pela mídia de maneira tão sensacionalista."
"Em muitos desses outros países, a rejeição à pena de morte não se deu através de decisão democrática. Ou seja, não está claro que os cidadãos de outros países -em oposição a seus governos- tenham opiniões sobre a pena de morte que difiram tão radicalmente da nossa", disse ele.
O episcopado católico norte-americano, que lidera a religião que tem o maior número de seguidores nos EUA, adota posição oficial contra a pena de morte há 25 anos. Recentemente os bispos descreveram a pena capital como "profundamente falha", dizendo que sua aplicação rotineira é algo que deixou o país "quase isolado" entre os países democráticos e desenvolvidos do mundo.
De acordo com os bispos católicos, o chamado bíblico por "olho por olho, dente por dente" não deve ser interpretado como apologia da pena de morte, mas como uma tentativa "de limitar o castigo que pode ser eventualmente aplicado por um delito".
Historicamente, porém, as igrejas têm defendido o direito do Estado de executar pessoas em nome da Justiça, observa o cardeal jesuíta Avery Dulles, da Universidade Fordham, que concorda com a oposição feita pelos bispos americanos à pena de morte.
"Durante o século 20, muitos governos europeus e de outras partes do mundo eliminaram a pena de morte, com freqüência passando por cima dos protestos de crentes religiosos", escreveu Dulles num ensaio de 2003. "Embora essa mudança possa ser vista como progresso moral, ela provavelmente se deve em parte à diluição do senso de pecado, culpa e justiça punitiva."

Tradução de Clara Allain

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