São Paulo, sexta-feira, 04 de janeiro de 2002

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ANÁLISE

Argentina precisa estimular a demanda externa com câmbio competitivo

RICARDO HAUSMANN
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

A transição política e econômica da Argentina desde a renúncia do presidente De la Rúa foi muito mal administrada. As consequências políticas desses erros, para o país e para o mundo, são ominosas.
Os peronistas, que têm a maioria em ambas as Casas do Congresso e governam 17 das 24 Províncias do país, estão se comportando menos como o partido que recuperou a Argentina da hiperinflação nos anos 90 e mais como o grupo que a levou ao abismo na década de 70.
Eduardo Duhalde, o presidente que acaba de ser empossado, agora tem até dezembro de 2003 para pôr fim ao pesadelo cada vez mais sério que a Argentina vem enfrentando. Jorge Renes Lenicov, ministro das Finanças, deve fazer um importante anúncio de política hoje. O que ele deveria dizer?
Primeiro, deveria esclarecer a natureza da crise. Contrariamente à opinião sustentada em Buenos Aires, a Argentina não sofre de uma crise keynesiana que exige estímulo à demanda doméstica.
Ela vinha operando com déficit em conta corrente, o que significa que gasta mais do que fatura, e financiava o diferencial com poupanças externas. À medida que esses recursos escasseavam, os gastos domésticos despencavam. A situação foi agravada pela fuga do capital doméstico, causada pelo colapso iminente do regime cambial e pela fraqueza do sistema bancário.
Estimular a demanda doméstica não é a solução. Em lugar disso, estimular a demanda externa por meio de uma taxa de câmbio competitiva e restabelecer a estabilidade financeira é essencial. A Argentina não precisa de uma injeção de liquidez. Precisa agir rápido para restaurar a liquidez das contas bancárias já existentes, mas congeladas.
Lenicov deveria reconhecer que os argentinos amavam seu velho sistema cambial, e ajudá-los a superar sua dor. Ele deveria a seguir persuadir os eleitores a aceitar políticas novas e duradouras.
O ministro deveria se recusar a adivinhar a taxa de câmbio ideal para a moeda nessa nova fase. A imprensa argentina fala em taxa fixa de câmbio de 1,3 peso por dólar, vinculada a uma cesta cambial mais ampla. Antes que cálculos demais sejam feitos nessa base, é melhor lembrar que de 1998 para cá o real brasileiro se depreciou em 120% diante do dólar e até mesmo a moeda chilena, bem administrada e recomendada como investimento, teve perdas de 48% em termos reais.
Sem acesso a financiamentos internacionais e com uma economia muito mais fechada, a Argentina deveria esperar por uma desvalorização substancial. Faltam ao país as reservas internacionais para impedi-la, e de qualquer forma não se deveria tentar. Em lugar disso, a Argentina deveria aproveitar a oportunidade para criar empregos na agricultura, indústria e turismo, e adotar uma estratégia agressiva de integração de comércio internacional, simplificando sua estrutura tarifária e agindo para aperfeiçoar o Mercosul e instaurar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
A taxa de câmbio precisa ser ancorada por uma política monetária confiável. Lenicov deveria mostrar que o banco central será capaz de controlar a base monetária e que deseja fazê-lo. Isso exigiria política fiscal prudente e um sistema bancário bem capitalizado, bem como um BC respeitável.
Ele deveria anunciar um Orçamento sólido para 2002, que inclua emissão limitada de passivo doméstico real, não deveria mais imprimir dinheiro sem valor.
O ministro precisa explicar também de que maneira o sistema bancário vai sobreviver à mudança no regime cambial. Dada a dolarização, o sistema não é capaz de sobreviver à desvalorização necessária, já que os devedores não serão capazes de pagar por seus empréstimos denominados em dólares. Duhalde, imprudentemente, prometeu que restituiria os depósitos dos correntistas na moeda em que foram feitos. Isso exigiria uma recapitalização dos bancos pelo governo. Converter todos os ativos e passivos a pesos e protegê-los contra a inflação doméstica por meio de correção monetária parece ser uma solução mais prática e justa.
A independência do BC precisa ser restabelecida, após a derrubada ilegal e vergonhosa de seu presidente em abril último; e seu mandato de combate à inflação deveria ser transformado em lei.
A Argentina não deve pedir o perdão de suas dívidas para com o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento. Não deve atrasar seus pagamentos a essas instituições, tampouco. Deveria conquistar seu apoio financeiro continuado à medida que negocia uma reestruturação da dívida privada, com perdão de uma parcela ponderável.
O futuro da Argentina está em encontrar oportunidades para seus cidadãos no mundo. Fechar essa economia já espantosamente fechada é uma receita de desastre. Um boom nas atividades de exportação, um sistema bancário sólido e a volta aos mercados financeiros internacionais depois da reestruturação da dívida são o caminho do futuro.


O autor é professor de Desenvolvimento Econômico na Universidade Harvard

Tradução de Paulo Migliacci


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