São Paulo, sábado, 04 de janeiro de 2003

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ANÁLISE

Qual é o jogo de Bush?

PAUL KRUGMAN
DO "THE NEW YORK TIMES"

Qual é o jogo que o governo Bush pensa estar jogando na Coréia?
Não se trata de uma pergunta retórica. Na Guerra Fria, os EUA empregavam especialistas em teoria dos jogos para analisar as estratégias de dissuasão nuclear. Homens com doutorados em Economia, como Daniel Ellsberg, escreviam estudos sérios com títulos como "A Teoria e a Prática da Chantagem". A qualidade intelectual dessas análises era impressionante, mas a principal conclusão que tinham a oferecer era simples: a dissuasão requer um compromisso confiável de que o mau comportamento será punido e o bom comportamento será recompensado.
Eu sei, parece bastante óbvio. Mas a política do governo Bush com relação à Coréia tem violado sistematicamente esse princípio simples.
Sejamos claros: os governantes da Coréia do Norte são muito cruéis. Mas, a menos que disponhamos de um plano para derrubar esse governos, devemos nos perguntar que incentivos estamos dando a eles.
Assim, coloque-se no lugar de Kim Jong-il. O governo Bush denunciou seu regime. Rompeu negociações com seu país assim que assumiu. No ano passado, embora você não tenha sido mais malvado que no ano anterior, George W. Bush o declarou parte do "eixo do mal". Meses mais tarde, o presidente norte-americano o classificou como "pigmeu", dizendo: "Desprezo Kim Jong-il, tenho uma reação visceral a esse sujeito... Eles me dizem que talvez não precisemos agir tão rápido, porque o ônus financeiro que a população do país vem sofrendo é tão imenso que o sujeito terminará derrubado. Bem, não acredito nisso".
Além disso, há todos os motivos do mundo para levar as vísceras de Bush a sério. Sob sua doutrina de prevenção, os EUA se reservam o direito der atacar países passíveis de apoiar o terrorismo, quer estes o tenham feito, quer não. E quem decide se atacamos ou não? Eis o que Bush tem a dizer: "Dizem que estamos a caminho de uma guerra contra o Iraque. Não sei por que dizem isso. Sou eu a pessoa que decide sobre isso". O Estado sou eu.
Assim, Bush acredita que você seja um mau sujeito, o que o torna um alvo potencial, não importa de que maneira você se comporte.
Por outro lado, Bush ainda não decidiu atacá-lo, ainda que você esteja muito mais perto de desenvolver armas de destruição em massa do que o Iraque. (É provável que você já tenha duas delas.) E você se pergunta por que Saddam Hussein está no primeiro lugar da fila. Ele não apóia o terrorismo mais do que você. O governo Bush não apresentou qualquer indício de conexão entre Saddam e a Al Qaeda. Talvez o governo esteja de olho nas reservas petrolíferas iraquianas, mas o mais notável é que, dos três membros do "eixo do mal", o Iraque seja o mais fraco em termos militares.
Assim, você poderia se sentir tentado a concluir que o governo Bush adora denunciar os malvados, mas pode ser impedido de atacar aqueles a quem denuncia caso acredite que eles possam oferecer resistência verdadeira.
Sua experiência parece servir como confirmação dessa conclusão. No terceiro trimestre de 2002, você foi pego em flagrante enriquecendo urânio, o que viola o espírito do acordo que firmou em 1994 com o governo Clinton.
Mas o governo Bush, embora pronto a invadir o Iraque ao menor sinal de um programa nuclear, tenta atenuar a importância dessa informação, e sua resposta -o corte das remessas de petróleo- não passa de uma admoestação branda. Na verdade, nem agora o governo Bush fez o que seu predecessor ordenou em 1994: o envio de tropas para a região e preparações para um conflito militar.
Assim, eis o que Pyongyang provavelmente vê nessa situação.
O governo Bush o acusa de ser parte do "eixo do mal". Não oferece assistência, mesmo que você cancele seu programa nuclear, porque isso seria recompensar o mal. Nem sequer promete que não o atacará, porque acredita que sua missão seja destruir os regimes malignos, quer representem ameaça para os Estados Unidos, quer não. Mas, apesar de toda sua belicosidade, o governo Bush parece disposto a confrontar apenas os regimes militarmente fracos.
Os incentivos para a Coréia do Norte são claros. Não há motivo para fingir de bonzinho se isso não trouxer nem assistência nem segurança. O país não precisa se preocupar com esforços norte-americanos para isolá-lo economicamente, já que os norte-coreanos não fazem comércio internacional, a não ser com a China, e a China não está cooperando. A melhor estratégia de preservação para Kim é ser perigoso. Assim, enquanto os Estados Unidos se ocupam do Iraque, os norte-coreanos deveriam preparar algum plutônio e produzir bombas.
Uma vez mais: que jogo o governo Bush acredita estar jogando?



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