São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

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Saúde decai com surto de penúria e de corrupção

VINCENT BLOCH
ESPECIAL PARA A FOLHA

O regime cubano e seus defensores mencionam o sucesso da "Revolução" na área da saúde. Foram 45 anos de esforços que garantiram acesso gratuito à medicina para todos os cidadãos, a ponto de Cuba registrar indicadores que não deixam nada a desejar aos de países desenvolvidos.
Mas o que as estatísticas não revelam é um sistema de saúde também regido pela penúria, pelo improviso e pela corrupção engendradas pelo regime castrista.
Em 1984, Fidel Castro apareceu com a idéia de converter a medicina geral em especialidade. Criou um projeto que previa "um médico para cada 120 famílias".
O objetivo era propiciar cuidados básicos por meio de clínicas geridas por um "médico de família". Dentro de seu perímetro geográfico, eles realizam tarefas administrativas, como compilar estatísticas, e coordenam com os demais centros a assistência complementar a seus pacientes.
Pediatra, ginecologista, generalista e agente administrativo, o sobrecarregado médico de família atende seus pacientes no hospital e precisa inventar remédios, já que falta tudo nas farmácias.
O alho combate a hipertensão, o mamão serve para os problemas digestivos. O médico repete a seus pacientes que não dispõe de antiinflamatórios ou antibióticos e que é preciso "tentar encontrá-los na rua". São sempre os agentes do mercado negro que encontram uma solução, a preço exorbitante.
O problema é mais espinhoso quando o médico pede radiografias ou outros exames. Se há produtos para o exame, é o especialista que não está disponível, ou a primeira data possível é para depois de dois meses. Só aqueles que podem pagar em dólar é que têm um exame bem rápido.
José, nome fictício de um personagem real, acordou com o corpo recoberto de manchas vermelhas. Consultou seu médico de família, que o enviou à "policlínica" da cidade, que, sem poder atendê-lo, o encaminhou ao hospital Hermanos Almejeiras, em Havana. Uma consulta com um dermatologista exigiu quatro meses de espera. O novo médico pediu exame de fezes. Suspeitava de parasitas.
"E para isso seria preciso esperar mais dois meses. Mas a mãe de um amigo trabalha no laboratório do Instituto de Medicina Tropical e levou a amostra para análise no dia seguinte. O resultado do teste foi negativo, e ela me aconselhou uma drenagem biliar. Um de seus colegas, a quem dei um presente, a realizou para mim uma semana depois." Diagnóstico: giardíase.
Medicamento? Disponível apenas nas farmácias que vendem em dólar, como a da clínica internacional Cira Garcia, ou o sétimo andar do hospital Manuel Fajardo, em Havana. Gerenciados pela Servimed, são estabelecimentos que hoje absorvem boa parte dos investimentos em saúde.
Eles recebem os residentes estrangeiros, os turistas ou os doentes como Maradona, que se desintoxicam a peso de ouro.
A elite dirigente e seus protegidos dispõem de um serviço de saúde especial, dotado de tecnologia de ponta.
Para os outros cubanos, restam hospitais em completa decadência, onde a irrupção constante de pacientes procurando por médicos ou enfermeiros recomendados por um amigo desorganiza todo o sistema de prioridades.

Teatro de epidemias
Além disso, as verbas destinadas às clínicas dos médicos de família reduziram o orçamento destinado às policlínicas, hospitais e institutos especializados.
No pronto-socorro do hospital de Guantánamo, no leste da ilha, onde Liset, um jovem médico de 29 anos, faz seus plantões, "os dilemas são cotidianos: um aparelho de oxigênio para dois pacientes, um calmante para dois pacientes sofrendo de dor de dente, nada de raio-X ou de exame de sangue".
E se o paciente precisa de uma cirurgia, tem de levar com ele ataduras, guardanapos, sabão, um ventilador, seringas, agulhas e às vezes até a água.
Bairros superpovoados, como o centro de Havana, onde as condições de higiene são deploráveis, tornaram-se teatro de epidemias de dengue e leptospirose.
Os médicos no passado desfrutavam da condição de queridinhos do regime. Nefrologista em um hospital de Havana, S. C. diz que "todos os dias recebemos críticas da população, embora os médicos de Cuba hoje em dia façam milagres".
Um especialista ganha 600 pesos (cerca US$ 23) ao mês e, com a sobrecarga de trabalho, não tem tempo para batalhar por fora e ganhar alguns dólares, algo que todos os cubanos são forçados a fazer para sobreviver.
Há hoje uma massa de médicos mudando de profissão, tornando-se carregadores de malas em hotéis ou garçons em centros turísticos. Muitos deles esperam ser enviados em "missões internacionalistas" para juntar dólares ou sair de vez do país.
Não importa o que aconteça, é preciso manter a fachada e, no curso de visitas oficiais, os hóspedes estrangeiros continuam a ser levados à requintada Escola Latino-Americana de Medicina, enquanto o Partido Comunista e a Segurança do Estado se esforçam mais do que nunca para controlar as estatísticas que fazem de Cuba "uma grande potência médica".


Vincent Bloch, 28, diplomado pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris e doutorando em sociologia da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, viveu em Cuba por dois anos.


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