São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TERROR NA RÚSSIA

O necrotério era pequeno para acolher os cadáveres de tantas crianças; 14 delas foram enfileiradas do lado de fora, no chão

Crianças matavam sua sede com urina

Reuters
Depois de passar 53 horas nas mãos de um grupo de terroristas, crianças que estudavam na Escola Número 1 de Beslan (Ossétia do Norte) são retiradas do prédio por militares, parentes e voluntários


DA REDAÇÃO

As crianças não puderam se alimentar ou beber água durante as 53 horas em que permaneceram como reféns dos terroristas tchetchenos. Para matar a sede, começaram a beber a própria urina.
Diana, uma das sobreviventes, contou ao canal russo de televisão NTV que ela e seus colegas da cidadezinha de Beslan urinavam dentro de garrafas e depois, para beber, usavam as roupas como filtro atado ao gargalo.
Um outro garoto disse que, depois das primeiras explosões, ele conseguiu quebrar uma janela e correr em direção às pessoas que desde a manhã de quarta-feira esperavam do lado de fora.
"Eu estava tão zonzo que nem reconheci meus pais", disse ele.
A multidão de pais aflitos que presenciaram a carnificina de ontem tinha uma única dúvida -não sabia ao certo quem havia disparado primeiro- e também uma única e mórbida impressão: era insuportável o barulho de tiros, o cheiro de pólvora e de cadáveres de crianças.

"BARATAS TONTAS"
Dois garotos, também ouvidos pela NTV, contaram que um grupo de 200 a 300 reféns se puseram a correr, tão logo as primeiras explosões foram ouvidas.
"Estávamos no meio deles. Corríamos de um lado para o outro, como baratas tontas. Até que homens armados, no telhado da escola, começaram a atirar."
Muitos dos reféns morreram naquele momento. Outros conseguiram escapar. A via de fuga eram as janelas. Se eram feitas de vidro, era difícil quebrá-las.
Mas as coisas ficavam mais fáceis quando as janelas eram de material sintético. Mesmo assim, as crianças se machucavam, deixavam o prédio ensangüentadas.

AS CRIANÇAS MORTAS
Os 15 pequenos cadáveres foram dispostos, ordenadamente enfileirados, sobre o gramado seco. Alguns deles tinham ainda os olhos abertos e a expressão de terror no rosto.
Estavam praticamente nus, apenas com as roupas de baixo. Traziam seus nomes em cartões cor-de-rosa amarrados em seus pés. Deveriam estar dentro do Instituto Médico Legal de Beslan. Mas é uma cidade pequena. Dentro já havia 40 cadáveres.
Alguns dos corpos do lado de dentro eram de mortos da quarta-feira. O calor do finzinho do verão na Ossétia do Norte ampliava o cheiro de putrefação.
A avó do garotinho se aproximou de um dos cadáveres colocados sobre a grama. Levantou o lençol. Reconheceu o rosto do neto. Deu um berro: "Vladislav!". Pedaços de carne descolavam do rosto. O menino estava quase irreconhecível. A avó chorava aos berros. À ela se juntaram outras mulheres idosas. Vladislav.

O ASSALTO FINAL
"As coisas agora estão mais calmas e, pela primeira vez em quatro horas, não sou mais obrigado a vestir meu colete à prova de balas", disse Jonathan Charles, um dos repórteres da BBC que cobriram a carnificina de Beslan.
Já eram 11h da manhã. Os tiros eram ouvidos agora ao longe, trocados entre militares e terroristas perseguidos pela cidade.
Mas, quando tudo começou, por volta das 6h, o fogo cruzado compunha cenas infernais.
Foram de início duas enormes explosões, antes mesmo daquelas que fizeram desabar o teto do ginásio de esportes da escola.
A polícia e o Exército reagiram no ato. Helicópteros Mig com metralhadoras atiravam em terroristas ou, por engano, em pessoas em fuga, simplesmente assustadas. Durante quase cinco horas, o barulho predominante era o de explosões de granadas, rajadas de metralhadora e gritos de moribundos.

AS EQUIPES DE TELEVISÃO
Sacha Lomakin é cinegrafista da rede russa ITN. Minutos depois que os terroristas passaram a matar seus jovens reféns, ele conseguiu entrar no ginásio da escola. Os soldados o expulsaram. Mas, pelos dois minutos de imagens em sua câmera, foi possível contar em torno de cem cadáveres.
Foi a primeira estimativa mais ou menos precisa, que as demais equipes de televisão imediatamente levaram ao ar.
A CNN estava com um repórter no local, Ryan Chilcote. Ele presenciou dois soldados russos que arrastavam pelo chão o corpo de um terceiro soldado morto.
A BBC tinha três. Também estavam por lá a ITV, rede privada britânica, e a Sky News, canal por satélite em língua inglesa.
Jonathan Charles, da BBC, quase levou um tiro. Viu um soldado russo ser morto a dez metros de distância. As equipes concorriam pelas melhores imagens. A ITV aparentemente assumiu o maior risco. Seu repórter, Julian Manyon, foi quem chegou mais perto do fogo cruzado. Num de seus boletins, sua voz era entrecortada pelo barulho ensurdecedor de metralhadoras.

O INCONFORMISMO DE BELA
Bela tinha uma sobrinha de 14 anos. Ela se chamava Regina. Bela a procurou por todos os cantos depois da carnificina. E a encontrou. Regina estava morta, no necrotério de um hospital.
"Pobrezinha, pobrezinha!", dizia Bela, em meio a soluços. Contou que a mãe de Regina não sabia que a filha havia morrido porque estava num outro hospital, à procura de um outro filho, talvez ferido na confusão.
A poucos metros de distância um homem chamado Goran trazia os olhos preventivamente avermelhados. Havia chorado de medo. Procurava por uma sobrinha de paradeiro desconhecido.
Uma multidão de cerca de 200 pessoas ameaçou atacar um homem que parecia um tchetcheno. A polícia interveio, dando tiros para o ar.
Antes de o dia amanhecer, um porta-voz do presidente da Ossétia do Norte havia prometido que as crianças mantidas como reféns não seriam expostas a nenhum risco possível. O próprio Vladimir Putin, presidente da Rússia, dissera na véspera que a prioridade era a integridade dos alunos.
Em seu primeiro boletim de notícias, a TV local disse que "todas as crianças estão sãs e salvas, e se espera que muitas delas sejam libertadas ainda hoje".

O RESGATE
Formou-se um mutirão nas imediações da escola para retirar as crianças e os adultos feridos. As ambulâncias demoraram a chegar. As poucas que permaneciam no local foram insuficientes para transportar as primeiras vítimas.
Carros particulares formaram um grupo confuso de voluntários. Com feridos no banco de trás, saíam em disparada, usando as buzinas como sirenes. Um garotinho embarcou no colo da mãe. Uma menina era levada sob um lençol ensangüentado.
Um homem que aparentava 35 anos se aproximou dos militares. Queria matar terroristas e salvar a filha mantida como refém. Um outro homem, ajoelhado, rezava em silêncio. Tocou seu celular. Seu filho fora localizado num dos hospitais.


Com agências internacionais


Texto Anterior: Invasão teve início após duas explosões
Próximo Texto: Terror na Rússia: UE cobra explicações do governo russo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.