São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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TERROR NA RÚSSIA

Final caótico e sangrento do cerco à escola põe em xeque autoridade de presidente russo, numa semana de ações terroristas

Fracasso de ação mancha imagem de Putin

MARY DEJEVSKY
DO "INDEPENDENT", EM MOSCOU

O cerco à escola em Beslan chegou ao fim da pior maneira possível. O final foi prolongado, caótico, sangrento e catastrófico não só para as famílias dos muitos mortos e feridos mas também para o presidente Vladimir Putin, para seu governo e para qualquer perspectiva de solução para o conflito da Tchetchênia no curto prazo.
O ataque chegou a ser visto como uma oportunidade para Putin e para as autoridades russas se redimirem. Acontecendo, como ocorreu, logo após a derrubada de dois aviões russos por terroristas e após outro ataque a bomba perto do metrô de Moscou, a esperança era que Putin mostraria do que sua administração é feita, reprimindo duramente os seqüestradores. Mas os russos também nutriam a esperança de que o cerco terminasse com os culpados sumariamente punidos, e os inocentes resgatados em segurança.
A captura de um grande número de crianças acabou com os últimos resquícios de simpatia que os russos pudessem nutrir pela causa tchetchena. No primeiro dia da ação, chegou a ser promovida uma manifestação contra o cerco na capital tchetchena, Grozni.
A reação das autoridades começou de maneira promissora. Putin prometeu agir com moderação e expressou sua preferência por uma solução pacífica. Em iniciativa inusitada, levou o problema até o Conselho de Segurança da ONU, obtendo o apoio moral da entidade e uma declaração que inseriu o separatismo tchetcheno militante no contexto do terrorismo global. Tudo indicava que Putin estava decidido a adotar uma abordagem cautelosa e prudente.
A intenção pode ter sido essa. Mas na noite de ontem ainda não estava claro se as forças de ação especial, as Spetsnasz, tinham montado sua operação seguindo um plano traçado de antemão ou se a invasão tinha sido precipitada por um fato inesperado no interior do prédio. Mas o que aconteceu fez Putin parecer insincero, incompetente e fraco.
Longe de relegar ao esquecimento as imagens negativas do cerco ao teatro em Moscou -no qual morreram 160 pessoas devido ao fracasso dos serviços de emergência em tratar os reféns contra os efeitos do gás tóxico-, a operação em Beslan só fez trazê-las à tona. A operação das forças russas no teatro foi considerada um sucesso militar, mas um desastre sob todos os outros aspectos. A operação de ontem parece ter sido um fracasso estrondoso sob todos os aspectos possíveis.
Uma operação que visava resgatar os reféns e punir os militantes tchetchenos chegou a um resultado quase oposto. Além disso, trouxe à tona uma realidade preocupante: a de que as já conhecidas deficiências das forças armadas e dos serviços de emergência russos ainda não foram resolvidas. A operação foi malsuprida e malcoordenada, o que reflete mal para o comandante supremo dessas forças, o próprio Putin.
É inevitável que o resultado da crise enfraqueça a autoridade do presidente, que já estava em baixa. Em termos institucionais, Putin nunca esteve mais forte do que após sua reeleição, em março. As eleições parlamentares já tinham dado a seu partido maioria na nova Duma, e Putin tinha indicado um novo governo sem que o Parlamento contestasse qualquer dos nomes que ele indicara. A economia russa vai de vento em popa, e os altos preços do petróleo proporcionaram ao país um superávit orçamentário que possibilita o aumento dos salários e benefícios e a melhora do padrão de vida.
Apesar de todas essas vantagens, a gestão Putin vem dando a impressão de estar à deriva. O caso da Yukos, com o julgamento por fraude do antigo presidente da maior companhia petrolífera do país, provocou temores entre os empresários russos e investidores estrangeiros. Como se acredita que o julgamento tenha sido em parte motivado por considerações políticas, também gerou dúvidas quanto à capacidade de Putin de fazer da Rússia um país em que a lei impera.
A nova geração de "kremlinologistas" russos discerne uma luta entre facções opostas de reformistas e o setor de linha dura, luta essa que paralisa a administração. Putin é visto pelos mesmos analistas como estando a meio caminho entre os dois grupos, enfraquecido por sua falta de uma base política forte no Kremlin. É possível que essa avaliação seja muito pessimista. Não há nenhuma sugestão de que o cargo de Putin esteja em risco. A questão é quão forte é sua autoridade.
É provável que os acontecimentos de ontem enfraqueçam sua popularidade e que a confiança em sua liderança saia prejudicada. Também diminui a confiança dos russos na capacidade de Putin de resolver a questão tchetchena.
É improvável que Putin, enfraquecido, mude o modo de enfrentar a questão da Tchetchênia. Ele não pode dar-se ao luxo de moderar sua posição -e, mesmo que o quisesse, o público russo, cada vez mais revoltado, não o permitiria.


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