São Paulo, sábado, 04 de dezembro de 2004

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OCEANIA

Episódios recentes de violência contra aborígenes intensificam conflitos entre brancos prósperos e negros marginalizados

Austrália vive aumento de tensão racial

26.nov.2004/Reuters
Cidade de Palm Island, coberta de fumaça após protesto contra a morte de aborígene; a delegacia e o tribunal local foram incendiados


KATHY MARKS
DO "INDEPENDENT"

É um episódio que lembra o sul dos Estados Unidos nos anos 60, mas aconteceu, supostamente, esta semana na Austrália. Dois trabalhadores rurais brancos despiram um adolescente aborígene e o arrastaram por uma rua de terra com uma corda em torno do pescoço. Chegando à margem de um rio, diz o rapaz, espancaram-no e o ameaçaram com uma espingarda de cano duplo.
O suposto incidente teria acontecido em Queensland, onde as tensões raciais já eram sérias depois de um tumulto em Palm Island, na semana passada. A confusão, que resultou no uso de coquetéis molotov contra a delegacia de polícia e o tribunal locais, foi deflagrada pela morte, em mãos da polícia, de um aborígene que sofreu hemorragia interna após uma briga com policiais.


"Estamos tristes pelo que aconteceu. Queremos lembrar à comunidade, e especialmente à polícia, que não estamos em temporada de caça aos negros"


Palm Island é um lembrete agourento das frustrações que fervem entre a população negra marginalizada da Austrália, e as alegações de um ataque ao estilo do Ku Klux Klan contra Alan Boland, 16, alimentaram temores de uma intensificação da violência racial. "Nós classificamos o acontecido como tortura sádica", disse Bert Button, líder aborígene local. "Isso é uma ação à maneira do KKK. Estamos chegando a um ponto em que matar e mutilar os negros está virando uma atividade conduzida abertamente."
Agora as tensões fervilham em uma nação que, em termos gerais, escolheu ignorar o "problema dos aborígenes". As questões indígenas não afetaram as eleições de outubro, que viram o primeiro-ministro, o conservador John Howard, reeleito com maioria ampliada no Parlamento.
A maior parte dos australianos brancos não se incomoda com as estatísticas sombrias sobre a vida dos aborígenes -que os negros morrem em média 20 anos mais cedo, por exemplo, que sofrem doenças típicas do Terceiro Mundo, que os índices de desemprego, assassinato e detenções entre eles são imensamente maiores.
Pode ter chegado o ponto em que os políticos e seus partidários entre os australianos comuns terão de prestar atenção ao que vem ocorrendo. Os habitantes originais do país não são de natureza combativa. Houve notavelmente poucos tumultos nas comunidades empobrecidas e alienadas que pouco se beneficiaram das recompensas econômicas associadas à vida em uma das mais prósperas economias do mundo.
Ao longo dos últimos 12 meses as coisas começaram a mudar. Em fevereiro, o gueto aborígene em Redfern, no centro de Sydney, teve uma noite de tumultos depois que um menino, Thomas Hickey, morreu ao ser atirado de sua bicicleta contra uma cerca metálica, que perfurou seu corpo. Moradores locais afirmaram que ele estava sendo perseguido pela polícia no momento do incidente. Um inquérito inocentou a polícia de qualquer envolvimento.
Na semana passada foi a vez de Palm Island, uma comunidade marcada por anos de privação e negligência. Dessa vez o catalisador foi a morte, em uma cela da polícia, de Cameron Doomadgee, 36. Uma autópsia demonstrou que ele morreu por ruptura do fígado, e que tinha quatro costelas fraturadas. As táticas violentas da polícia para conter os distúrbios exacerbaram a insatisfação.
O suposto incidente na fazenda em Goondiwindi, no sul de Queensland, chocou até mesmo os mais cínicos observadores. De acordo com a polícia, Alan Boland e três companheiros invadiram um barracão na fazenda, terça-feira à noite. Um trabalhador e seu filho os perseguiram; os demais escaparam, mas Alan foi apanhado enquanto tentava atravessar o rio a nado. Os homens supostamente amarraram suas mãos e o espancaram com tábuas. O aborígene não saiu muito ferido, mas teve de ser internado para tratar dos golpes na cabeça, peito e torso, e das queimaduras causadas pela corda em seu pescoço.
De acordo com alguns relatos, um de seus colegas, também adolescente, foi amarrado a uma árvore e forçado a assistir ao ataque contra o amigo.
O primeiro-ministro do Estado, Peter Beattie, pediu às pessoas que "não reagissem com exagero" ao incidente, e disse que seriam apresentadas acusações tanto quanto ao roubo como com relação à agressão. "Quem quer que observe esse incidente com objetividade verá que temos de aplicar a lei com igual rigor aos brancos e aos negros", disse. "É a maneira mais justa de agir."
O prefeito de Goondiwindi, Tom Sullivan, também fez um apelo pedindo calma. "Digo à comunidade que precisamos esperar para ver o que surgirá dessa situação, e que não devemos nos precipitar", afirmou. "As pessoas precisam ser sensatas e calmas quanto a essas coisas, e permitir que as investigações da polícia sigam seu curso normal." Os dois homens, de 44 e 23 anos, foram acusados de agressão e lesões corporais. Terão sua audiência inicial com o juiz em janeiro.
Mas na reserva aborígene de Toomelah, onde vive o menino, o sentimento é de raiva e descrença. Moradores do local dizem que ele foi arrastado pela terra por quase uma hora.
"Vemos esse padrão se repetindo há anos. Acontece mais ou menos a cada dois dias, não só em Queensland, mas em outros lugares da Austrália, contra os moradores indígenas. Mas só alguns incidentes ganham destaque. E quando alguns aborígenes perdem a calma, dizem que são selvagens, ou vemos uma vez mais a síndrome de culpar a vítima", disse Button à Australian Broadcasting Corporation, rede de TV australiana.
É assim a vida de uma classe negra sem direitos, em um país no qual duas nações convivem -uma nação de brancos prósperos, desfrutando de todas as recompensas de um lugar abençoado com sol e recursos naturais, e uma nação de negros aborígenes destinados a uma vida de miséria, desesperança e degradação. Esses últimos procuram consolo no álcool, nas drogas e em cheirar gasolina, e voltam seu ardente ressentimento uns contra os outros. A violência contra mulheres e crianças grassa nas comunidades aborígenes.
Muito poucos aborígenes logram escapar às condições em que nasceram. Entre aqueles que conseguiram está Michael Long, ex-jogador de futebol australiano criado em Tiwi Islands, ao norte de Darwin, onde os postes elétricos eram cercados por arame farpado para impedir que jovens suicidas os galgassem para se eletrocutar. Os aborígenes de Tiwi também são notáveis por demonstrar a mais alta incidência de doenças renais do mundo: 60 vezes superior à do restante da Austrália.
Long, que se tornou um herói nacional graças à sua habilidade no esporte, se frustrou tanto com o sofrimento de seus companheiros aborígenes que decidiu percorrer a pé os 660 quilômetros que separam Melbourne da capital nacional, Canberra, a fim de exigir ser recebido pelo primeiro-ministro.
Fez cerca de metade da jornada antes que Howard enviasse uma mensagem dizendo que se encontraria com ele e dois outros líderes aborígenes, Patrick Dodson e Paul Briggs, no Parlamento.
Mas é improvável que a conversa renda resultados concretos. O primeiro-ministro já deixou claro que não tem intenção de mudar de rumo quanto à política para com os aborígenes. No ano passado, aboliu a comissão dos aborígenes e ilhéus do estreito de Torres, eleita por voto popular, substituindo-a por um órgão indicado pelo governo, o Conselho Indígena Nacional, para o qual Long foi convidado. O novo órgão se reunirá pela primeira vez na semana que vem. Long recusou a oferta, dizendo que isso não daria aos aborígenes uma voz real.
Os australianos, enquanto isso, esperam com inquietação para saber se o ataque a Alan Boland resultará em novas erupções de violência. "A comunidade se sente entristecida pelo que aconteceu, e estamos zangados, particularmente porque a lembrança do ocorrido em Palm Island ainda está fresca em nossa memória. Trazemos na lembrança o menino morto na cerca de aço em Redfern. E queremos lembrar à comunidade em geral, e especialmente à polícia, que não estamos em temporada de caça aos negros", disse Button.
Palm Island continua a ser uma zona de potencial conflito, patrulhada por policiais pesadamente armados. O funeral de Doomadgee, que será realizado na semana que vem, deverá ser causa de profunda emoção. A polícia foi avisada para ficar longe. Os resultados de uma segunda autópsia ainda não saíram, mas os moradores locais estão convencidos de que ele morreu após ser espancado pelos guardas. Um líder indígena local ameaçou a polícia com uma política de "revanche".
A ilha, distante e esquecida, tem um passado complicado. Conquistou o título de lugar mais violento do mundo, excluídas as zonas de combate militar, no Livro Guinness dos Recordes de 1988.
As mortes sob custódia da polícia são uma questão especialmente dolorosa para os aborígenes; no passado muitos morreram nas prisões. Na noite de sexta (26/11), 300 pessoas mostraram sua fúria.
As táticas da polícia só inflamaram a situação. Policiais usando armas de choque e pistolas semi-automáticas teriam invadido casas depois dos tumultos, em busca de suspeitos. Os moradores locais dizem que crianças de apenas nove anos foram forçadas a se deitar com o rosto na terra, diante de armas apontadas. Foram detidas 21 pessoas, que querem ser libertadas para o funeral.
"Não temos confiança alguma no dito sistema de justiça australiano", diz Sam Watson, um ativista aborígene local. Os aborígenes não têm representação em nível nacional. O único político aborígene na Austrália, Aden Ridgeway, perdeu seu posto na recente eleição. Ridgeway declarou esta semana que a política do governo de tratar todos os australianos igualmente não leva em conta a vasta disparidade entre negros e brancos. "O governo está determinado a manter uma visão filosófica de que o tratamento deve ser igual, sem reconhecer que muitas comunidades estão muito atrasadas, de modo que tratamento igual representa muitas vezes a perpetuação da desigualdade", disse.
Fred Chaney, co-presidente da Reconciliation Australia, também entrou no debate, afirmando acreditar que a raiva sentida por muitos aborígenes era justificada.
Chaney, que foi ministro responsável por assuntos aborígenes em governos dos anos 70, disse que o progresso quanto a essas questões "estagnou". "Acreditamos ser a hora de estabelecer uma nova agenda para os assuntos indígenas, e evidentemente para a reconciliação", disse. Boni Robertson, uma professora universitária aborígene, expressou horror diante do episódio na fazenda em Queensland. "Isso, depois de Palm Island, é demais", disse ela ao jornal "The Australian". "Até que ponto esperam que nosso povo agüente? Estamos em meio a uma crise racial no país". Os líderes aborígenes anunciaram um dia nacional de protesto na semana que vem, contra a morte de indígenas detidos pela polícia. Os negros respondem por 20% da população carcerária australiana, embora sejam apenas 2% da população total.
A ministra de Assuntos Indígenas, Amanda Vanstone, disse esta semana que as mortes de aborígenes sob custódia caíram 50% desde a década de 1980. Mas acrescentou que "os recentes incidentes em Redfern e Palm Island nos servem de lembrete de que ainda temos muito a avançar".

Tradução de Paulo Migliacci


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