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TRAGÉDIA COTIDIANA
Guerra civil faz com que milhões de angolanos migrem para cidades, agravando problemas sociais
Refugiados modificam vida na capital
LUIS FERNANDO
especial para a Folha, de Luanda
O número 270 da avenida Combatentes da Grande Guerra, em
Luanda, tem um novo inquilino
há coisa de seis semanas. Numa
cidade como a capital de Angola,
onde o problema habitacional é
grave e as pessoas estão sempre a
mudar de casa para escapar dos
aluguéis caros, se resguardar de
vizinhos incômodos ou, simplesmente, porque se fartaram daquela goteira que mancha o carpete todos os dias, não teria nada
de especial o fato de um cidadão
mudar-se para o número 270 da
avenida dos Combatentes ou para
outro endereço qualquer.
Acontece, porém, que, neste caso, se trata de um inquilino pouco
comum. Tem 13 anos, chama-se
João Chivale e não ocupa nenhum dos 90 apartamentos do
edifício. Chegou, esfarrapado e faminto, numa tarde fria de agosto
e instalou-se justamente ao lado
da caixa de correio do imóvel. Ali
dorme, tendo por agasalho uma
manta que uma mão caridosa lhe
estendeu três dias depois de ter
ocupado o hall do aristocrático
edifício. João Chivale veio de Cuíto, a cidade capital da meridional
Província do Bié, fustigada pela
artilharia da guerrilha. É, portanto, um refugiado de guerra.
Como João Chivale, existem
mais de 3 milhões de angolanos
atirados para a indigência e que se
tornaram errantes para não acabar atravessados por uma bala ou
esmagados sob os escombros de
um edifício, dos muitos que a artilharia da Unita derruba na sua
cruzada contra o governo. Fogem
para bem longe dos campos de
batalha dispersos um pouco por
todo o país, a norte, sul e nordeste
sobretudo, procurando atingir o
litoral seguro, sendo Luanda o
destino mais apetecido.
Os refugiados de guerra, que representam aproximadamente um
terço da população de Angola,
constituem a preocupação mais
séria da agenda do governo, junto
à inflação e à guerra mesma.
São milhões de homens, mulheres, jovens e crianças relegados à
condição de reféns da extrema
pobreza, mais do que isso, criticamente dependentes das instituições de caridade. É um esforço em
que se dão as mãos as autoridades
e a comunidade internacional, em
primeira instância a ONU por
meio do Programa Alimentar
Mundial. As organizações não-governamentais fazem do mesmo
modo parceria com o governo,
mas o que é certo é que, nas últimas semanas, entrou-se para
uma fase de colapso iminente.
Andam minguados os estoques
alimentares e há, nos muitos campos de refugiados, episódios chocantes. Em concentrações de pouco mais de 20 mil refugiados chegam a acontecer dez mortes todos
os dias por desnutrição. A TV não
se cansa de mostrar corpos esqueléticos disputando heroicamente
doses minúsculas de comida, no
mais sugestivo e comovente testemunho sobre a inutilidade de
uma guerra como esta.
Digamos que aquilo que as balas não conseguem, fá-lo a fome e
a sua inseparável companheira, a
doença. A malária é, para os angolanos, um verdadeiro flagelo,
matando mais que a Aids e as
diarréias juntas. Com a crise dos
refugiados, não há acampamento
algum a salvo das picadas dos
transmissores da temível malária.
Se nas cidades o paludismo já é
o que é, incisivo e implacável,
imagine-se o seu poder devastador nos campos de refugiados,
onde o saneamento é caótico e as
pessoas têm as defesas do organismo enfraquecidas.
Mas a malária, mesmo sendo a
primeira responsável pelo aumento da mortandade, está longe
de ser o único terror destes tempos difíceis para Angola. Morre-se de muito mais e, sintoma da
crise, até enfermidades outrora
controladas voltam a ganhar nova
dimensão, expandido-se para
áreas não tradicionais. É o caso da
"doença do sono", que responde
pelo nome científico de tripanossomíase, que há uns 20 anos estava confinada a uma pequena extensão do norte do país. Hoje, a
doença, provocada pela mosca
tsé-tsé, estendeu-se por mais duas
Províncias pelo menos e já está às
portas de Luanda.
A instabilidade militar em Angola obriga a movimentos de pessoas em direção a localidades seguras, isto é, sob administração
do governo. Nessa rota migratória, as cidades são os destinos
mais frequentes.
Luanda, a capital, representa no
meio dessa incessante procura de
segurança um caso único. Todos
os dias, a cidade recebe centenas
de novos habitantes, que mais nada têm em mãos a não ser o desejo
de pôr a salvo as próprias vidas.
Fora disso, para o refugiado, é o
vazio: sem dinheiro, sem roupas,
sem trabalho, o exemplo melhor
acabado do sujeito que chega para criar problemas. Está entregue
à caridade, como quem diz, à
obrigada atenção do governo. O
refugiado não leva muito tempo a
perceber que tem de contar, acima de tudo, com a sua própria
força e habilidade para sobreviver
num meio onde milhares de outros estão em idêntica aventura.
A saída é, no geral, o comércio
informal. Nas cidades, os atirados
para a indigência pela guerra
constituíram um verdadeiro
exército de vendedores ambulantes. É vê-los, cada dia, calcorreando ruas, avenidas e praças, agarrados a um número inimaginável
de artigos e bugigangas, que vão
do papel higiênico à réplica da
Gioconda de Leonardo da Vinci.
Há de tudo. É um estrondoso
espetáculo a céu aberto, que encontra sua expressão mais elevada no mercado batizado, não se
sabe bem por que, de Roque Santeiro, título de uma novela de sucesso da Rede Globo. A feira nasceu com a guerra, agigantou-se
com ela e assume-se, com o seu
jeito desalinhado, sujo e brutal,
como um grotesco ex-líbris da capital desordenada pelo descomunal movimento de pessoas.
Luanda rebenta pelas costuras
em consequência da guerra pois
anda, nas estatísticas, com muitos
milhões para lá do número de habitantes desejável. A cidade foi
concebida para meio milhão de
pessoas e hoje tem mais de 3 milhões. Não há, é óbvio, acondicionamento digno para tantas almas
numa superfície tão diminuta.
De nudez, fome e doenças é o
cotidiano de muitos luandeses,
apanhados pelo fogo cruzado de
uma guerra que lhes tolhe movimentos e ações num país em que
era suposto viver-se na mais farta
das prosperidades.
Multiplique-se várias vezes esse
quadro da capital e já se tem a
imagem do resto do país. A crise
na primeira pessoa, por culpa de
uma desprezível "dama" chamada "guerra civil".
O jornalista angolano Luis Fernando é diretor-geral do "Jornal de Angola"
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