São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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TRAGÉDIA COTIDIANA
Guerra civil faz com que milhões de angolanos migrem para cidades, agravando problemas sociais
Refugiados modificam vida na capital

LUIS FERNANDO
especial para a Folha, de Luanda

O número 270 da avenida Combatentes da Grande Guerra, em Luanda, tem um novo inquilino há coisa de seis semanas. Numa cidade como a capital de Angola, onde o problema habitacional é grave e as pessoas estão sempre a mudar de casa para escapar dos aluguéis caros, se resguardar de vizinhos incômodos ou, simplesmente, porque se fartaram daquela goteira que mancha o carpete todos os dias, não teria nada de especial o fato de um cidadão mudar-se para o número 270 da avenida dos Combatentes ou para outro endereço qualquer.
Acontece, porém, que, neste caso, se trata de um inquilino pouco comum. Tem 13 anos, chama-se João Chivale e não ocupa nenhum dos 90 apartamentos do edifício. Chegou, esfarrapado e faminto, numa tarde fria de agosto e instalou-se justamente ao lado da caixa de correio do imóvel. Ali dorme, tendo por agasalho uma manta que uma mão caridosa lhe estendeu três dias depois de ter ocupado o hall do aristocrático edifício. João Chivale veio de Cuíto, a cidade capital da meridional Província do Bié, fustigada pela artilharia da guerrilha. É, portanto, um refugiado de guerra.
Como João Chivale, existem mais de 3 milhões de angolanos atirados para a indigência e que se tornaram errantes para não acabar atravessados por uma bala ou esmagados sob os escombros de um edifício, dos muitos que a artilharia da Unita derruba na sua cruzada contra o governo. Fogem para bem longe dos campos de batalha dispersos um pouco por todo o país, a norte, sul e nordeste sobretudo, procurando atingir o litoral seguro, sendo Luanda o destino mais apetecido.
Os refugiados de guerra, que representam aproximadamente um terço da população de Angola, constituem a preocupação mais séria da agenda do governo, junto à inflação e à guerra mesma.
São milhões de homens, mulheres, jovens e crianças relegados à condição de reféns da extrema pobreza, mais do que isso, criticamente dependentes das instituições de caridade. É um esforço em que se dão as mãos as autoridades e a comunidade internacional, em primeira instância a ONU por meio do Programa Alimentar Mundial. As organizações não-governamentais fazem do mesmo modo parceria com o governo, mas o que é certo é que, nas últimas semanas, entrou-se para uma fase de colapso iminente.
Andam minguados os estoques alimentares e há, nos muitos campos de refugiados, episódios chocantes. Em concentrações de pouco mais de 20 mil refugiados chegam a acontecer dez mortes todos os dias por desnutrição. A TV não se cansa de mostrar corpos esqueléticos disputando heroicamente doses minúsculas de comida, no mais sugestivo e comovente testemunho sobre a inutilidade de uma guerra como esta.
Digamos que aquilo que as balas não conseguem, fá-lo a fome e a sua inseparável companheira, a doença. A malária é, para os angolanos, um verdadeiro flagelo, matando mais que a Aids e as diarréias juntas. Com a crise dos refugiados, não há acampamento algum a salvo das picadas dos transmissores da temível malária.
Se nas cidades o paludismo já é o que é, incisivo e implacável, imagine-se o seu poder devastador nos campos de refugiados, onde o saneamento é caótico e as pessoas têm as defesas do organismo enfraquecidas.
Mas a malária, mesmo sendo a primeira responsável pelo aumento da mortandade, está longe de ser o único terror destes tempos difíceis para Angola. Morre-se de muito mais e, sintoma da crise, até enfermidades outrora controladas voltam a ganhar nova dimensão, expandido-se para áreas não tradicionais. É o caso da "doença do sono", que responde pelo nome científico de tripanossomíase, que há uns 20 anos estava confinada a uma pequena extensão do norte do país. Hoje, a doença, provocada pela mosca tsé-tsé, estendeu-se por mais duas Províncias pelo menos e já está às portas de Luanda.
A instabilidade militar em Angola obriga a movimentos de pessoas em direção a localidades seguras, isto é, sob administração do governo. Nessa rota migratória, as cidades são os destinos mais frequentes.
Luanda, a capital, representa no meio dessa incessante procura de segurança um caso único. Todos os dias, a cidade recebe centenas de novos habitantes, que mais nada têm em mãos a não ser o desejo de pôr a salvo as próprias vidas.
Fora disso, para o refugiado, é o vazio: sem dinheiro, sem roupas, sem trabalho, o exemplo melhor acabado do sujeito que chega para criar problemas. Está entregue à caridade, como quem diz, à obrigada atenção do governo. O refugiado não leva muito tempo a perceber que tem de contar, acima de tudo, com a sua própria força e habilidade para sobreviver num meio onde milhares de outros estão em idêntica aventura.
A saída é, no geral, o comércio informal. Nas cidades, os atirados para a indigência pela guerra constituíram um verdadeiro exército de vendedores ambulantes. É vê-los, cada dia, calcorreando ruas, avenidas e praças, agarrados a um número inimaginável de artigos e bugigangas, que vão do papel higiênico à réplica da Gioconda de Leonardo da Vinci.
Há de tudo. É um estrondoso espetáculo a céu aberto, que encontra sua expressão mais elevada no mercado batizado, não se sabe bem por que, de Roque Santeiro, título de uma novela de sucesso da Rede Globo. A feira nasceu com a guerra, agigantou-se com ela e assume-se, com o seu jeito desalinhado, sujo e brutal, como um grotesco ex-líbris da capital desordenada pelo descomunal movimento de pessoas.
Luanda rebenta pelas costuras em consequência da guerra pois anda, nas estatísticas, com muitos milhões para lá do número de habitantes desejável. A cidade foi concebida para meio milhão de pessoas e hoje tem mais de 3 milhões. Não há, é óbvio, acondicionamento digno para tantas almas numa superfície tão diminuta.
De nudez, fome e doenças é o cotidiano de muitos luandeses, apanhados pelo fogo cruzado de uma guerra que lhes tolhe movimentos e ações num país em que era suposto viver-se na mais farta das prosperidades.
Multiplique-se várias vezes esse quadro da capital e já se tem a imagem do resto do país. A crise na primeira pessoa, por culpa de uma desprezível "dama" chamada "guerra civil".


O jornalista angolano Luis Fernando é diretor-geral do "Jornal de Angola"

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