São Paulo, #!L#Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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ARTIGO
A resistível ascensão de Joerg Haider

SALMAN RUSHDIE

Em abril de 1995, o 50º aniversário do fim do regime nazista na Áustria foi festejado com um grande comício na praça Helden, no centro de Viena. Sob o balcão do qual Adolf Hitler discursou para a multidão de seus fiéis, que o aclamaram aos urros, artistas, intelectuais e políticos austríacos, mas também muitos de seus amigos e aliados vindos de outros países, reuniram-se para comemorar a queda de Hitler e, por assim dizer, purgar a histórica praça de seu vínculo com o mal.
Naquela noite tive o privilégio de figurar entre os oradores e tive a impressão de que o verdadeiro propósito da manifestação era permitir que a "Áustria boa" -o grupo substancial de eleitores visceralmente opostos a Haider e dos quais ouve-se falar tão pouco fora das fronteiras austríacas- finalmente tomasse forma e elevasse sua voz. E foi assim, por sinal, que os partidários de Joerg Haider entenderam o evento, que em pouco tempo se tornou alvo de todas as suas zombarias. Logo depois, começou a chover.
Foi uma chuva forte, densa, implacável, sem tréguas. Uma chuva neonazista, absolutista, intolerante, decidida a abrir caminho. Os organizadores da manifestação não escondiam sua preocupação. Uma participação pequena demais faria a alegria dos partidários de Haider e traria o risco de fazer a situação voltar-se a seu favor.
Uma semana mais tarde, todos com certeza já teriam esquecido o mau tempo, mas a imagem de uma praça quase deserta continuaria a assombrar os espíritos. O comício deveria continuar, custasse o que custasse. E a chuva continuava a cair, pesada.
No entanto, quando chegou minha hora de subir ao palanque, abriu-se à minha frente uma visão inesquecível: a praça Helden recoberta de pessoas, tão repleta quanto a Times Square na noite do réveillon do ano 2000. Encharcada até os ossos, a multidão estava radiante, entusiasmada, fantasticamente jovem. A chuva caiu sobre aqueles jovens durante a noite toda, mas eles zombaram dela. Tendo vindo em massa para expressar algo que realmente lhes era importante, teria sido necessário mais do que a chuva para fazê-los bater em retirada.
Aquela talvez tenha sido a multidão mais comovente que já vi na vida, e naquela noite conheci um absurdo sentimento de otimismo quanto ao futuro da Áustria. O objetivo de manifestações como aquela é precisamente este: fortalecer a esperança das pessoas. E ela o fez com as minhas.
À luz daquela noite, o avanço irresistível de Haider rumo ao poder desperta em mim algo como uma lembrança sinistra do percurso seguido pelo personagem central, hitlerista, de "A Resistível Ascensão de Arturo Ui", de Brecht. São coisas que realmente nos deixam um gosto estranho na boca. A popularidade cada vez maior de Haider assinala a derrota de todos aqueles jovens que defendiam um mesmo ideal, ombro a ombro sob a chuva torrencial.
Mas seria ilusório enxergar o triunfo de Haider unicamente como uma vitória do mal sobre o bem. O sucesso dos líderes extremistas invariavelmente está vinculado às fraquezas do sistema que tentam suplantar ou, pelo menos, controlar.
A tirania do xá do Irã gerou a dos aiatolás. A corrupção fraca da velha Argélia secular criou condições para o surgimento dos extremistas islâmicos. No Paquistão, os abusos de poder cometidos por Nawaz Sharif tornaram possíveis os novos abusos de sucessor, o general Musharraf. A incompetência e a corrupção do Partido do Congresso, na Índia, permitiram a chegada ao poder do partido nacionalista hindu BJP, associado à facção Shiv Sena, conhecida por sua brutalidade. Os fracassos do Partido Trabalhista britânico serviram aos interesses do conservadorismo radical de Thatcher. E a "grande coalizão" austríaca, sistema baseado no nepotismo, deixou os eleitores desiludidos a ponto de levá-los para Haider.
A imprensa de nossa era fervilha com essas histórias de figurões corrompidos, e essas revelações vêm em cheio de encontro aos interesses dos demagogos populistas da laia de Haider.
Quando os herdeiros de Bettino Craxi dão de ombros e qualificam o caixa-dois do trio Kohl/Mitterrand/ Craxi como algo de importância menor, fazem com que a situação piore ainda mais. Quanto mais a Europa se submeter a uma grande coalizão de líderes arrogantes para os quais os fins justificam os meios, mais ela dará argumentos a todos os seus Haiders.
À maneira de Bal Thackeray, que reina em Bombaim, Haider afirma que não participaria do governo. De fato, o que pode haver de mais fácil do que mexer os pauzinhos indiretamente, enquanto se mantém confortavelmente protegido "na sombra"? Mas o apoio do qual Thackeray desfruta vem principalmente dos habitantes pobres e mais marginalizados da cidade. Haider, a acreditarmos no teórico Karl Marcus Gauss, conseguiu realizar a mesma proeza, mas à moda européia. Como Le Pen na França ou Bossi na Itália, atraiu os favores da burguesia nova-rica. E, ainda seguindo Gauss, o que essa camada social detesta nos imigrantes não é a raça, mas a pobreza.
"O sistema é corrupto", afirmam os cartazes dos adversários de Kohl. Eles têm razão, mas a luta contra essa corrupção e a luta contra Haider devem ser uma só. A União Européia precisa empregar tanta energia para expulsar de suas fileiras os virtuoses do caixa-dois quanto para formar uma frente comum contra Haider.
No final da peça de Brecht, o ator que faz o papel de Ui vai até a frente do palco e se dirige diretamente ao público, precavendo-o contra os perigos da complacência. Ui/Hitler pode ter sido derrubado, lembra-nos, mas a cadela que o pariu está no cio outra vez. A União Européia precisa varrer logo a sua porta, se não quiser que a história se lembre dela como a encarnação mais moderna dessa cadela saída dos esgotos.


Salman Rushdie, escritor anglo-indiano, é autor de "Os Versos Satânicos", que motivou decreto religioso de morte contra ele no Irã.
Tradução de Clara Allain










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