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ARTIGO
A resistível ascensão de Joerg Haider
SALMAN RUSHDIE
Em abril de 1995, o 50º aniversário do fim do regime nazista na
Áustria foi festejado com um
grande comício na praça Helden,
no centro de Viena. Sob o balcão
do qual Adolf Hitler discursou
para a multidão de seus fiéis, que
o aclamaram aos urros, artistas,
intelectuais e políticos austríacos,
mas também muitos de seus amigos e aliados vindos de outros países, reuniram-se para comemorar
a queda de Hitler e, por assim dizer, purgar a histórica praça de
seu vínculo com o mal.
Naquela noite tive o privilégio
de figurar entre os oradores e tive
a impressão de que o verdadeiro
propósito da manifestação era
permitir que a "Áustria boa" -o
grupo substancial de eleitores visceralmente opostos a Haider e
dos quais ouve-se falar tão pouco
fora das fronteiras austríacas-
finalmente tomasse forma e elevasse sua voz. E foi assim, por sinal, que os partidários de Joerg
Haider entenderam o evento, que
em pouco tempo se tornou alvo
de todas as suas zombarias. Logo
depois, começou a chover.
Foi uma chuva forte, densa, implacável, sem tréguas. Uma chuva
neonazista, absolutista, intolerante, decidida a abrir caminho. Os
organizadores da manifestação
não escondiam sua preocupação.
Uma participação pequena demais faria a alegria dos partidários de Haider e traria o risco de
fazer a situação voltar-se a seu favor.
Uma semana mais tarde, todos
com certeza já teriam esquecido o
mau tempo, mas a imagem de
uma praça quase deserta continuaria a assombrar os espíritos. O
comício deveria continuar, custasse o que custasse. E a chuva
continuava a cair, pesada.
No entanto, quando chegou minha hora de subir ao palanque,
abriu-se à minha frente uma visão
inesquecível: a praça Helden recoberta de pessoas, tão repleta
quanto a Times Square na noite
do réveillon do ano 2000. Encharcada até os ossos, a multidão estava radiante, entusiasmada, fantasticamente jovem. A chuva caiu
sobre aqueles jovens durante a
noite toda, mas eles zombaram
dela. Tendo vindo em massa para
expressar algo que realmente lhes
era importante, teria sido necessário mais do que a chuva para fazê-los bater em retirada.
Aquela talvez tenha sido a multidão mais comovente que já vi na
vida, e naquela noite conheci um
absurdo sentimento de otimismo
quanto ao futuro da Áustria. O
objetivo de manifestações como
aquela é precisamente este: fortalecer a esperança das pessoas. E
ela o fez com as minhas.
À luz daquela noite, o avanço irresistível de Haider rumo ao poder desperta em mim algo como
uma lembrança sinistra do percurso seguido pelo personagem
central, hitlerista, de "A Resistível
Ascensão de Arturo Ui", de
Brecht. São coisas que realmente
nos deixam um gosto estranho na
boca. A popularidade cada vez
maior de Haider assinala a derrota de todos aqueles jovens que defendiam um mesmo ideal, ombro
a ombro sob a chuva torrencial.
Mas seria ilusório enxergar o
triunfo de Haider unicamente como uma vitória do mal sobre o
bem. O sucesso dos líderes extremistas invariavelmente está vinculado às fraquezas do sistema
que tentam suplantar ou, pelo
menos, controlar.
A tirania do xá do Irã gerou a
dos aiatolás. A corrupção fraca da
velha Argélia secular criou condições para o surgimento dos extremistas islâmicos. No Paquistão,
os abusos de poder cometidos por
Nawaz Sharif tornaram possíveis
os novos abusos de sucessor, o general Musharraf. A incompetência e a corrupção do Partido do
Congresso, na Índia, permitiram
a chegada ao poder do partido nacionalista hindu BJP, associado à
facção Shiv Sena, conhecida por
sua brutalidade. Os fracassos do
Partido Trabalhista britânico serviram aos interesses do conservadorismo radical de Thatcher. E a
"grande coalizão" austríaca, sistema baseado no nepotismo, deixou os eleitores desiludidos a
ponto de levá-los para Haider.
A imprensa de nossa era fervilha com essas histórias de figurões corrompidos, e essas revelações vêm em cheio de encontro
aos interesses dos demagogos populistas da laia de Haider.
Quando os herdeiros de Bettino
Craxi dão de ombros e qualificam
o caixa-dois do trio Kohl/Mitterrand/ Craxi como algo de importância menor, fazem com que a situação piore ainda mais. Quanto
mais a Europa se submeter a uma
grande coalizão de líderes arrogantes para os quais os fins justificam os meios, mais ela dará argumentos a todos os seus Haiders.
À maneira de Bal Thackeray,
que reina em Bombaim, Haider
afirma que não participaria do
governo. De fato, o que pode haver de mais fácil do que mexer os
pauzinhos indiretamente, enquanto se mantém confortavelmente protegido "na sombra"?
Mas o apoio do qual Thackeray
desfruta vem principalmente dos
habitantes pobres e mais marginalizados da cidade. Haider, a
acreditarmos no teórico Karl
Marcus Gauss, conseguiu realizar
a mesma proeza, mas à moda européia. Como Le Pen na França
ou Bossi na Itália, atraiu os favores da burguesia nova-rica. E, ainda seguindo Gauss, o que essa camada social detesta nos imigrantes não é a raça, mas a pobreza.
"O sistema é corrupto", afirmam os cartazes dos adversários
de Kohl. Eles têm razão, mas a luta contra essa corrupção e a luta
contra Haider devem ser uma só.
A União Européia precisa empregar tanta energia para expulsar de
suas fileiras os virtuoses do caixa-dois quanto para formar uma
frente comum contra Haider.
No final da peça de Brecht, o
ator que faz o papel de Ui vai até a
frente do palco e se dirige diretamente ao público, precavendo-o
contra os perigos da complacência. Ui/Hitler pode ter sido derrubado, lembra-nos, mas a cadela
que o pariu está no cio outra vez.
A União Européia precisa varrer
logo a sua porta, se não quiser que
a história se lembre dela como a
encarnação mais moderna dessa
cadela saída dos esgotos.
Salman Rushdie, escritor anglo-indiano, é
autor de "Os Versos Satânicos", que motivou
decreto religioso de morte contra ele no Irã.
Tradução de Clara Allain
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