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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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ARTIGOS

O medo que devora a alma

NADINE GORDIMER

Pode haver o fenômeno de um estado de espírito mundial?
Certamente algo desse tipo vem existindo há muitas semanas, exceto, possivelmente, nos encraves isolados pela natureza -isto é, se as florestas impenetráveis e o gelo intransponível ainda não tiverem sido invadidos, finalmente, pela informática.
Antigamente havia pessoas que eram encontradas em confins longínquos, depois de guerras, e que nem sequer sabiam que ocorrera um conflito. Vivemos num mundo mais consciente do que nunca; a consciência de uma guerra entre a potência dominante entre as nações e uma potência oposta, de capacidade amorfa (pois quem é que sabe ao certo que forças irão se unir em solidariedade religiosa?), vem sendo uma mudança de clima global que a tudo permeia e que todos nós respiramos.
Contra a questão ostensiva das armas de destruição em massa, muitas reações podem se manifestar: ira, beligerância, descrença, ultraje sagrado, vindas dos fiéis da democracia e dos fiéis do islã.

O medo e os gases
Entre inimigos, em meio ao medo de gases tóxicos e da contaminação invisível por doenças (pois não podem os gases se dispersar sobre aqueles que os distribuíram, e as doenças, contaminá-los?), se espalha o miasma daquela atmosfera contra a qual não há uniforme especial, máscaras ou abrigos plásticos que possam nos proteger. O medo. Sem ser reconhecido, ele é compartilhado por aliados e inimigos, mesmo que nada mais o seja.
Procuramos alguma espécie de conselho ou palavra de sabedoria nos relatos de como outros já enfrentaram o medo. Temos a atitude insensatamente corajosa, indiferente aos perigos, do discurso de posse de Franklin D. Roosevelt, em 1933, quando ele declarou acreditar firmemente que ""a única coisa que temos a temer é o próprio medo".
A frase soa oca agora, após as novas formas de extermínio humano que descobrimos desde então para darmos cabo de nós mesmos.
Pode o medo ser uma força que age para o bem?
Lembremo-nos do velho ditado segundo o qual ""a segurança maior reside no medo". Mas essa idéia, alguém contestará, tolera a covardia, justifica que nos furtemos ao dever de defender os valores de nossa sociedade.
Tucídides foi o primeiro filósofo com quem me eduquei na adolescência, e é natural que eu me volte a ele agora e, num caderno antigo, encontre outro ponto de vista sobre o fenômeno do medo. ""Que a guerra é um mal é algo que todos nós sabemos, e seria insensato continuar a catalogar todas as desvantagens nela envolvida. Ninguém é obrigado a entrar numa guerra por desconhecimento, nem, se pensar que poderá ganhar com ela, é impedido de fazê-lo pelo medo."
Os protestos de massa contra a guerra liderada pelos EUA contra o Iraque são feitos pela convicção de que a conquista, pela guerra, da segunda maior reserva petrolífera do mundo não é ""mantida à distância" pelo medo de que milhares de pessoas classificadas como ""lideradas pelo inimigo" serão mortas e que os corpos dos jovens vitoriosos justos, em seus sacos mortuários, nunca mais irão precisar de óleo combustível.
""O medo possui muitos olhos e pode enxergar por baixo da terra", observa Cervantes.

O ponto zero
O medo do que está acontecendo -esse rugir em nossos ouvidos- não começou quando o 11 de setembro de 2001 enterrou a invencibilidade?
Se o tempo ocupa um plano de existência às vezes penetrado pelos grandes escritores, será que T.S. Eliot (1888-1965) não se aventura anos à frente, passando sobre o ""ponto zero", quando, ainda em 1922, escreve:
""E eu lhes mostrarei algo diferente / De sua sombra, pela manhã, caminhando à sua frente / ou de sua sombra à noite, erguendo-se para ir a seu encontro; / Eu lhe mostrarei o medo num punhado de poeira".
Eu sou uma dessas pessoas que vivem distantes dos perigos terríveis dos ataques e das retaliações que atravessam mares e céus. Mas não estou naquele hoje inexistente encrave de isolamento, fora deste mundo.
E, como muitos que estão distantes dos continentes em guerra, tenho, apesar disso, um interesse pessoal envolvido nesta guerra: alguém que é a pessoa mais próxima de mim vive, com sua jovem família, no vulnerável coração de Nova York.
Ele me conta que a escola das crianças avisou aos pais que o porão do estabelecimento foi equipado para funcionar como abrigo, com estoque de água e um sistema de ventilação adaptado, capaz de manter à distância os elementos nocivos. Algumas pessoas, diz ele, já fizeram as malas e deixaram a cidade, alvo óbvio de violência, quer ela seja direta ou insidiosa.
Será que isso significa ceder diante daqueles que ameaçam? Ou pode ser uma opção sensata para pessoas que podem se ausentar de seus empregos assalariados e têm algum outro lugar para ir -um lugar seguro?
Seguro. Quem pode saber o que e onde fica fora do alcance das armas não convencionais que, nos dizem, saem de laboratórios, em lugar de armarias?
Pergunto a ele: ""O que você vai fazer?".
Ele então me recorda: ""O que você e seus companheiros faziam durante as crises do apartheid, quando havia o perigo de serem presos pela polícia política ou de algum fanático de direita jogar uma bomba para explodir seu carro, com você dentro?".
Vá levar a vida adiante.
Os perigos são relativos, no tempo e na distância. O medo é relativo. Quer ameace uma multidão ou uma única vida, sempre exige as mesmas respostas: um sim ou um não.
Render-se por dentro ou negar-se a se deixar dominar pelo atrito, o medo que devora a alma.


A escritora Nadine Gordimer, 79, Prêmio Nobel de Literatura em 1991, publicou recentemente seu 13º romance, ""The Pickup", onde aborda a questão muçulmana. No Brasil, já saíram obras suas como "A Arma da Casa", "A História dos Meus Filhos", "Ninguém para Acompanhar", "Uma Mulher sem Igual" e "O Pessoal de July"

Tradução Clara Allain


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