São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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"Pensei que seríamos executados pelos americanos"

"Foi humilhante", disse Abd. "Pensei que não fôssemos sobreviver."
O testemunho de Abd difere em um aspecto crucial do teor de um relatório do general Antonio Taguba, divulgado na semana passada pela revista "The New Yorker" e pelo programa "60 Minutes". Enquanto o relatório dizia que a polícia militar com freqüência maltratava prisioneiros para ajudar os oficiais de inteligência a obter informações, Abd disse que seu caso parece ter ocorrido como castigo por mau comportamento.
Depois da briga na prisão, Abd e seis outros homens foram apontados pela vítima aos guardas, e a partir desse momento sua vida na prisão mudou completamente.
Abd contou que ele e os outros homens foram algemados e levados para um bloco de celas conhecido como "o lugar duro", reservado aos presos mais perigosos. Ali, pela primeira vez, ele viu um soldado americano chamado "Joiner ou algo assim". "No meu bolso eu tinha três cigarros", disse Abd. "Joiner me disse: "Coloque-os na boca e fume todos. Se um deles cair de sua boca, eu vou esmagar você com minha bota"."
O comando foi dado através de um intérprete, um egípcio conhecido pelos prisioneiros como Abu Hamid. Em uma área diante das celas, disse Abd, estavam "Joiner", o intérprete e dois outros soldados, um deles calvo e outro ruivo, com pele avermelhada. Ele disse que também havia duas mulheres -aquela cujo nome ele não soube dizer e outra que segurava a máquina fotográfica e que ele identificou como Miss Maya.
"Não tive escolha", contou Abd. "Fumei todos."
Abd contou que os sete homens foram encapuzados e que então o espancamento começou. "Eles bateram nossas cabeças contra as paredes e as portas", contou. "Não enxergava nada." Abd contou que seu maxilar foi quebrado -ele agora tem dificuldade para comer. Acha que levou 50 golpes durante duas horas.
"Então o intérprete nos disse para tirarmos nossas roupas", contou Abd. "Nós lhe dissemos: "Você é egípcio e muçulmano -sabe que, como muçulmanos, não podemos fazer isso". Quando nos recusamos, eles nos bateram e arrancaram nossas roupas com uma lâmina."


Não éramos terroristas. Não éramos insurgentes. Éramos pessoas comuns. E a inteligência americana sabia disso. (...) Isso é democracia? Isso é liberdade?


Foi nesse momento da entrevista que foram mostradas a Abd as fotos. Sem emoção, apontou todos seus amigos -Hussein, Ahmed, Hashim-, nus, encapuzados, enlaçados.
Também viu a si mesmo da maneira mais degradante possível: nu, com as mãos sobre os genitais, enquanto uma soldada -identificada em outro relato como Lynndie England- aponta para ele e sorri.
Ele contou que seu amigo Hussein foi empurrado até perto de sua genitália. "Eles o fizeram ficar do meu lado. Meu pênis estava muito perto de sua boca. Por causa do capuz, eu não sabia que era meu amigo."
Abd disse que foi então que os soldados começaram a empilhar os homens uns sobre os outros e a tirar muitas fotos. Três ou quatro vezes, afirmou, os soldados os obrigaram a empilhar-se em pirâmides. Duas vezes, disse, os soldados obrigaram alguns presos a ajoelhar no chão, enquanto outros montavam sobre suas costas. Em dado momento perto do final, disse Abd, "Joiner" agarrou os capuzes dos prisioneiros, como se fossem coleiras de cachorro. "Ele falou: "Quando eu assobiar, você vai latir como cão" ", disse Abd.
Finalmente, após o que Abd calcula que tenham sido quatro horas de sofrimento, a tortura chegou ao fim. Os soldados tiraram as camas das celas, ele contou, e jogaram água fria no chão. Os presos foram obrigados a dormir no chão, ainda encapuzados. "Eu estava tão exausto que adormeci", contou Abd. "Eram as mesmas paredes dentro das quais Saddam interrogava as pessoas. Pensávamos que seríamos executados."
Na manhã seguinte, porém, contou, médicos chegaram para cuidar dos ferimentos. As camas foram trazidas de volta. Os presos foram alimentados. Todos foram muito simpáticos, disse Abd. Então, à noite, o mesmo grupo, com "Joiner", voltava, os fazia ficar nus e os algemava às paredes.
Cerca de dez dias depois de começar, as sessões diárias de abuso noturno terminaram, sem que qualquer explicação tivesse sido dada. "Joiner" simplesmente parou de vir ao bloco de celas e, cerca de um mês mais tarde, Abd foi transferido para uma prisão iraquiana civil em Bagdá.
Mais ou menos duas semanas depois disso, um investigador militar americano foi visitá-lo. Ele mostrou as fotos a Abd e pediu-lhe uma declaração contra os policiais militares que o haviam maltratado. Abd confiou nele.
"Ele falou: "Não tenha medo. Conte-nos o que aconteceu. Estamos de seu lado", lembra Abd.
Abd finalmente foi libertado na metade de abril. Olhando em retrospectiva, a única explicação que ele consegue imaginar para os maus-tratos é que "Joiner" estaria bêbado. "Os americanos, de modo geral, não me maltrataram", disse ele. "Mas essas pessoas precisam ir a julgamento."
"Não posso lhe explicar meu sentimento. Os americanos nos livraram de Saddam. Falaram-nos de democracia e liberdade. Ficamos felizes por isso." Mas então ele tocou nas fotos outra vez. "Então esse homem fez aquilo. Eu pergunto: isso é democracia? Isso é liberdade?" Apesar de tudo, afirma que não recusaria uma oferta de mudar-se para os EUA.

Tradução de Clara Allain


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