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ARTIGO
Já agüentamos o suficiente
PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"
Os EUA estão passando por um
momento orwelliano. Nas frentes
de política externa e fiscal, o governo Bush tenta reescrever a história, ao buscar explicações que
justifiquem os constrangimentos
pelos quais está passando.
Comecemos pelo caso das armas de destruição em massa
(ADMs) que não existem. Você se
lembra de quando a CIA foi criticada pelos falcões porque seus
analistas relutavam em pintar um
quadro suficientemente alarmante da ameaça iraquiana?
Há cerca de uma semana, a história foi revista; agora dizemos
que a ameaça foi exagerada, e que
a culpa disso é da CIA. Em vista
dos avisos que recebeu, o governo
não teria tido outra opção senão
invadir o Iraque.
Um lembrete de Marshall, do site www.talkingpointsmemo.com,
trouxe-me à memória quão diferente era a história oficial, algum
tempo atrás. No ano passado,
Laurie Mylroie publicou um livro
intitulado "Bush vs. the Beltway:
How the C.I.A. and the State Department Tried to Stop the War
on Terror" (Bush contra o establishment -como a CIA e o departamento de Estado tentaram
impedir a guerra contra o terror).
O livro de Mylroie veio acompanhado de um elogio escrito por
Richard Perle; sabe-se que a autora é próxima de Paul Wolfowitz e
do chefe do gabinete do vice-presidente Dick Cheney.
Segundo a contracapa, "Mylroie
descreve como a CIA e o Departamento de Estado sistematicamente lançaram em descrédito as informações dos serviços de inteligência sobre o regime de Saddam,
incluindo as evidências indiscutíveis de que este possui armas de
destruição em massa".
A revelação mais recente veio
do Reino Unido. Brian Jones, que
foi o principal analista de ADMs
do Ministério da Defesa britânico
quando Tony Blair preparava
seus argumentos em defesa da
guerra, diz que o dossiê crucial
usado para fundamentar esses argumentos não refletia a opinião
dos profissionais.
"Passou-se por cima do parecer
dos especialistas em inteligência",
disse ele. Todos concordaram que
as afirmações feitas no dossiê deveriam ter sido acompanhadas de
reservas especiais, mas isso não
foi feito.
E não nos esqueçamos do Escritório de Planos Especiais do Pentágono, criado especialmente para apresentar um retrato mais
alarmante da ameaça iraquiana. É
quase certo que a comissão "independente" do presidente Bush,
escolhida a dedo, não vá investigar esse escritório. Como lorde
Hutton, no Reino Unido -que
optou por ignorar o depoimento
de Brian Jones.
E, se as figuras políticas mais
importantes conseguirem seu intento, isso não é tudo que será
reescrito. Você talvez se recorde
de que Saddam Hussein cedeu à
exigência da ONU de que autorizasse os inspetores de armas a
vasculhar o país à procura das armas proibidas. Há pouco tempo
Bush declarou que a guerra foi
justificada porque Saddam "não
nos deixou entrar".
Agora falemos do outro grande
motivo de constrangimento da
administração: o déficit orçamentário. O relatório sobre o Orçamento fiscal de 2005 admite que o
déficit de US$ 521 bilhões previsto
para este ano desmente as previsões róseas feitas em 2001. Mas o
relatório oferece uma explicação
para isso: problemas acontecem.
"Os déficits orçamentários
atuais são o resultado inevitável
da erosão de receita decorrente da
queda do mercado acionário que
começou no início de 2000, de
uma economia em fase de recuperação da recessão e de um país
que enfrenta ameaças sérias à sua
segurança."
O problema é que, para aceitar
essa desculpa, é preciso esquecer
muita coisa que aconteceu na história recente. Até fevereiro de
2002, quando a administração divulgou seu Orçamento fiscal para
2003, as más notícias -a explosão da bolha, a recessão e o 11 de
Setembro- já tinham acontecido. No entanto aquele Orçamento
projetou um déficit de apenas
US$ 14 bilhões para este ano e
uma volta aos superávits a partir
do ano que vem. Por que essa previsão se mostrou tão equivocada?
Porque funcionários da administração omitiram ou falsearam os
fatos, como de costume.
Gostaria de poder pensar que os
esforços crassos do governo de
reescrever a história vão dar errado, que a mídia e o público bem
informado não vão deixar isso
acontecer impunemente. Já não
agüentamos o suficiente?
Tradução de Clara Allain
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