São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

Já agüentamos o suficiente

PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

Os EUA estão passando por um momento orwelliano. Nas frentes de política externa e fiscal, o governo Bush tenta reescrever a história, ao buscar explicações que justifiquem os constrangimentos pelos quais está passando.
Comecemos pelo caso das armas de destruição em massa (ADMs) que não existem. Você se lembra de quando a CIA foi criticada pelos falcões porque seus analistas relutavam em pintar um quadro suficientemente alarmante da ameaça iraquiana?
Há cerca de uma semana, a história foi revista; agora dizemos que a ameaça foi exagerada, e que a culpa disso é da CIA. Em vista dos avisos que recebeu, o governo não teria tido outra opção senão invadir o Iraque.
Um lembrete de Marshall, do site www.talkingpointsmemo.com, trouxe-me à memória quão diferente era a história oficial, algum tempo atrás. No ano passado, Laurie Mylroie publicou um livro intitulado "Bush vs. the Beltway: How the C.I.A. and the State Department Tried to Stop the War on Terror" (Bush contra o establishment -como a CIA e o departamento de Estado tentaram impedir a guerra contra o terror).
O livro de Mylroie veio acompanhado de um elogio escrito por Richard Perle; sabe-se que a autora é próxima de Paul Wolfowitz e do chefe do gabinete do vice-presidente Dick Cheney.
Segundo a contracapa, "Mylroie descreve como a CIA e o Departamento de Estado sistematicamente lançaram em descrédito as informações dos serviços de inteligência sobre o regime de Saddam, incluindo as evidências indiscutíveis de que este possui armas de destruição em massa".
A revelação mais recente veio do Reino Unido. Brian Jones, que foi o principal analista de ADMs do Ministério da Defesa britânico quando Tony Blair preparava seus argumentos em defesa da guerra, diz que o dossiê crucial usado para fundamentar esses argumentos não refletia a opinião dos profissionais.
"Passou-se por cima do parecer dos especialistas em inteligência", disse ele. Todos concordaram que as afirmações feitas no dossiê deveriam ter sido acompanhadas de reservas especiais, mas isso não foi feito.
E não nos esqueçamos do Escritório de Planos Especiais do Pentágono, criado especialmente para apresentar um retrato mais alarmante da ameaça iraquiana. É quase certo que a comissão "independente" do presidente Bush, escolhida a dedo, não vá investigar esse escritório. Como lorde Hutton, no Reino Unido -que optou por ignorar o depoimento de Brian Jones.
E, se as figuras políticas mais importantes conseguirem seu intento, isso não é tudo que será reescrito. Você talvez se recorde de que Saddam Hussein cedeu à exigência da ONU de que autorizasse os inspetores de armas a vasculhar o país à procura das armas proibidas. Há pouco tempo Bush declarou que a guerra foi justificada porque Saddam "não nos deixou entrar".
Agora falemos do outro grande motivo de constrangimento da administração: o déficit orçamentário. O relatório sobre o Orçamento fiscal de 2005 admite que o déficit de US$ 521 bilhões previsto para este ano desmente as previsões róseas feitas em 2001. Mas o relatório oferece uma explicação para isso: problemas acontecem.
"Os déficits orçamentários atuais são o resultado inevitável da erosão de receita decorrente da queda do mercado acionário que começou no início de 2000, de uma economia em fase de recuperação da recessão e de um país que enfrenta ameaças sérias à sua segurança."
O problema é que, para aceitar essa desculpa, é preciso esquecer muita coisa que aconteceu na história recente. Até fevereiro de 2002, quando a administração divulgou seu Orçamento fiscal para 2003, as más notícias -a explosão da bolha, a recessão e o 11 de Setembro- já tinham acontecido. No entanto aquele Orçamento projetou um déficit de apenas US$ 14 bilhões para este ano e uma volta aos superávits a partir do ano que vem. Por que essa previsão se mostrou tão equivocada? Porque funcionários da administração omitiram ou falsearam os fatos, como de costume.
Gostaria de poder pensar que os esforços crassos do governo de reescrever a história vão dar errado, que a mídia e o público bem informado não vão deixar isso acontecer impunemente. Já não agüentamos o suficiente?


Tradução de Clara Allain


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