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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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SEXO VULNERÁVEL

Idade das vítimas vai de 5 a 80 anos; violência é praticada por todas as partes envolvidas na guerra

Estupro sistemático é arma de guerra no conflito do Congo

DA REDAÇÃO

Générose, 20, foi raptada numa estrada do leste da República Democrática do Congo quando ia comprar seu vestido de noiva. Um soldado a arrastou até uma cabana de plástico no meio de uma floresta, onde outros três o esperavam. Por 17 dias, ela foi estuprada diariamente pelos quatro homens. Eventualmente, comia um mingau feito com a farinha que eles roubavam. Dormia num canto onde depois descobriu ser o mesmo local em que era mantida, antes dela, outra mulher. Não tomava banho nem trocava de roupa. Quando falava, apanhava. "Finalmente, eles se cansaram e me mandaram embora", disse.
O depoimento faz parte de um relatório lançado pela organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW) em junho do ano passado, após três semanas de entrevistas e pesquisas no país. Desde então, a situação na República Democrática do Congo, embora tenha ganhado evidência e gerado discussões, não mudou em nada.
"O estupro sistemático tem sido usado como arma de guerra para ferir as mulheres e, mais do que isso, para humilhar os homens que lutam do outro lado e destruir as comunidades, tornando muito mais difícil para elas se refazerem após o conflito", disse à Folha Noeleen Heyzer, diretora-executiva do Unifem, o fundo da ONU para as mulheres.
O Congo não é o primeiro lugar atingido pelo problema e, na avaliação do Unifem, não será o último -antes do conflito em Ruanda, no início dos anos 90, a violência sexual contra a mulher em zonas de conflito nem sequer era considerada crime de guerra.
Mas é lá que a situação se tornou mais gritante nos últimos anos, com ampla participação de todas as forças envolvidas no conflito que eclodiu no país em 1996 -forças do governo, combatentes rebeldes, soldados de Ruanda e grupos armados do Burundi.
Com a economia local destruída pela guerra civil, as mulheres -muitas delas tornadas chefes de família com a morte dos homens em combate- são obrigadas a manter seu trabalho na lavoura e nas florestas, onde produzem carvão vegetal, expondo-se ao risco. Raptadas, são mantidas como escravas para préstimos sexuais e domésticos por períodos que às vezes superam um ano -em parte desses grupos, a prática da violência é motivo de admiração, compensada com poder.
Muitas que buscam proteção nas cidades acabam sofrendo violência sexual por parte de soldados do governo e mesmo funcionários públicos. Enquanto o objetivo dos insurgentes é aterrorizar as comunidades para que estas se submetam à sua autoridade, muitos funcionários do governo usam a fragilidade da lei local para acobertar seus crimes sexuais.

Futuro em risco
Ainda que sejam as maiores vítimas, as mulheres não são as únicas a sofrer as consequências dos estupros sistemáticos. "Elas são a última barreira para as crianças. Além desses estupros as destruírem, seus filhos ainda são sequestrados para se tornar soldados ou escravos sexuais", diz Heyzer.
As idades das vítimas variam de cinco a 80 anos. Muitas são atacadas com a família. Os homens, quando não são mortos, fogem.
As consequências têm sido devastadoras, com a proliferação da Aids e a gravidez de meninas e mulheres que não terão condições de criar seus filhos.
Embora tenha aumentado o número de grupos que prestam assistência às vítimas de estupros no país, muitas nunca se recuperam dos efeitos físicos, psicológicos e sociais. Nem a polícia nem o sistema judiciário tratam os casos a sério, e a impunidade prevalece.
A situação dá algum sinal de mudança no escopo do debate.
"Aos poucos o silêncio está sendo rompido, e quem está fazendo isso são as mulheres. Elas estão rompendo esse ciclo de vergonha e trazendo o assunto para um debate aberto, tirando-o da seara individual e passando à pública, para que se busque soluções legais", diz Heyzer, em um tom esperançoso. "Mas, se não houver paz, será difícil deter o processo da violência." (LUCIANA COELHO)


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