São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AMÉRICA LATINA

Segundo analista, país não tem força para ser líder mundial, mas consegue atuar como conciliador na região

Brasil é "bombeiro da América do Sul"

CLÁUDIA DIANNI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Brasil não tem poder econômico nem militar, por isso jamais poderá ser um líder mundial. Mas sua diplomacia estável e poder conciliador são os capitais que tornam o país o "bombeiro da América do Sul", afirma o professor de relações internacionais da Universidade de Brasília, Amado Luiz Cervo, 64, que estuda as relações externas do Brasil há mais de 30 anos.
Nos últimos dias, o Brasil concedeu asilo político ao ex-presidente do Equador Lucio Gutiérrez, discutiu a situação da Venezuela com a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, e cravou uma vitória sobre a União Européia na OMC (Organização Mundial do Comércio).
Para Cervo, essas ações revelam "o histórico potencial conciliador do Brasil", mas ele classifica de "ridícula" a aspiração do país a um assento permanente no Conselho de Seguranças da ONU.
Doutor em história pela Universidade de Strasbourg, ele já publicou ou organizou mais de 30 livros. Leia, a seguir, a entrevista que Cervo concedeu à Folha na última terça-feira, no seminário de 50 anos do IBRI (Instituto Brasileiro de Relações Internacionais), instituição que já presidiu.

Folha - A liderança do Brasil é legítima ou imposta e incomoda os vizinhos?
Amado Luiz Cervo -
Liderança no cenário externo depende de dois fatores. Capacidade estratégica, ou seja, poder militar, que o Brasil não tem, e poder econômico, que o Brasil também não tem. Portanto, o Brasil não tem poder no cenário internacional, mas isso não quer dizer que seja irrelevante, porque tem uma diplomacia racional, de continuidade histórica e uma conduta externa previsível, o que é um elemento de confiança. Por isso, possui uma racionalidade de conduta de Estado que os vizinhos não têm, já que são muito volúveis e instáveis.

Folha - Isso é suficiente para exercer uma liderança regional?
Cervo -
O governo brasileiro é um bombeiro, que apaga os incêndios da região e procura reduzir as tensões. Como a vizinhança é muito pobre, a única potência aqui é o Brasil, mesmo com o nosso pequeno Exército ridículo. O Brasil tem capacidade estratégica e superioridade econômica em relação aos vizinhos. Pelo seu tamanho e sua população é invulnerável na área e procura reforçar o poder com alianças políticas.
Esse é o caminho que escolheu historicamente para reforçar seu poder internacional. Isso vem desde o presidente Juscelino Kubitschek, que lançou a Operação Panamericana para administrar a cooperação internacional para conduzir projetos de desenvolvimento nacional no Brasil e na América Latina (em 1958). Nos anos 60 o Brasil foi um dos grandes líderes do Terceiro Mundo e conseguiu coesões e coalizões. Esse governo está recuperando essa tendência.

Folha - Mas o governo tem recebido críticas por apostar em alianças com países pobres.
Cervo -
O Brasil está conseguindo formar essas alianças com grande êxito e quem critica não enxerga isso. Exemplos dessa liderança é a formação do G20 [grupo de países em desenvolvimento que defendem o fim dos subsídios agrícolas] e as vitórias na OMC, que estabelece regras de comércio que só favorecem os ricos. As vitórias do Brasil contra a União Européia [subsídios à exportação de açúcar] e contra os EUA [subsídios à produção de algodão] são provas desse sucesso. A aliança Brasil-Índia-África do Sul é outro exemplo. Agora está surgindo uma aliança estratégica entre Brasil, Argentina e Venezuela, que não sei como vai evoluir pois a Argentina é um parceiro que nunca foi confiável.

Folha - O Brasil acertou ao conceder asilo político ao ex-presidente do Equador Lucio Gutiérrez?
Cervo -
Claro que sim. Exatamente por ter o poder de conciliar, como fez no conflito ente Equador e Peru, em 95, tem de atuar assim. Esse poder de conciliar é o capital político do Brasil.

Folha - Esse capital político será suficiente para conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, como quer o governo?
Cervo -
Para que? O Brasil não tem capacidade estratégica e não é uma potência econômica. Vai fazer o que no Conselho de Segurança da ONU? Por que os grandes vão querer o Brasil, que só vai atrapalhar, porque quem estabelece a ordem é quem tem poder. O Brasil não tem meios para manter a ordem. Só pode mandar um tropinha para o Haiti porque a ONU paga. O Brasil está querendo se sobrevalorizar. Não acho correto querer se projetar acima dos próprios meios. Isso em relações internacionais é sempre um erro.

Folha - Lançar um candidato à direção-geral da OMC foi uma ousadia fracassada?
Cervo -
Era óbvio que o Brasil ia perder. O Seixas [embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, candidato brasileiro] ia lutar pelos países emergentes. O Lamy [ex-comissário de Comércio da União Européia Pascal Lamy], que é quem vai ganhar, vai lutar pelos interesses do países desenvolvidos, das estruturas hegemônicas da Europa e dos EUA, e a capacidade que esses países têm de influir na decisão dos outros é muito grande.

Folha - A Cúpula América do Sul- Países Árabes é uma iniciativa audaciosa que pode afrontar os Estados Unidos?
Cervo -
É audaciosa porque o Brasil é o único interessado nesse assunto. Nenhum outro país da América do Sul tem interesses importantes no mundo árabe como o Brasil. Essa cúpula pode criar resistências à liderança do Brasil na região. É preciso ter cuidado. Mas não acredito que os EUA estejam muito preocupados. O Bush [presidente George W. Bush] gosta do Lula.

Folha - Por quê?
Cervo -
Porque o Lula tem uma política externa moderada. Só defende interesses concretos quando eles estão em jogo. Os americanos respeitam quem tem esse tipo de comportamento. Por isso o Bush gosta do Lula, sobretudo porque sabe que o Brasil pode manter a estabilidade na região.

Folha - Como o Brasil pode moderar o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, como querem os Estados Unidos?
Cervo -
Pela relação política, pessoal e econômica, ou seja, fazendo exatamente o que está fazendo. Na penúltima viagem que Lula fez à Venezuela, ele carregou um avião cheio de empresários. Ele tem que manter o Chávez no seu clube político, como seu amigo, manter boa relação política e estreitamento econômico, para que Chávez o escute.

Folha - As relações do Brasil com Cuba incomodam os EUA?
Cervo -
A relação do Brasil com Cuba é simplesmente folclórica e a opinião pública aprecia. Na verdade, Cuba é irrelevante. É apenas símbolo de uma autonomia decisória em política internacional que o Brasil frisou e manteve sempre. Essa relação não é ideológica, mas sentimental e para segurar os Estados Unidos e manter o princípio de auto determinação. O Brasil não tem nada de ideologia em política internacional. Isso quem diz é uma direitona ignorante. O Brasil é pragmático e realista.

Texto Anterior: Cuba: Desenho animado é nova arma cubana contra os EUA
Próximo Texto: Reino Unido: Brilho de Brown ofusca a vitória de Blair
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.