São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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ELEIÇÃO NOS EUA

Por causa do colégio eleitoral, os candidatos não fazem campanha em Estados onde não têm chances

Bush e Kerry ignoram 60% do eleitorado

VITOR PAOLOZZI
DA REDAÇÃO

Apesar de estarem envolvidos em uma disputa presidencial que até agora dá mostras de que será tão acirrada quanto a de 2000, o republicano George W. Bush e o democrata John Kerry fazem campanha apenas para 40% do eleitorado americano. A razão que explica por que os dois candidatos decidiram ignorar a maior parte da população é a mesma que justifica por que Al Gore, mesmo tendo conseguido 543.895 votos a mais há quatro anos, não mora hoje na Casa Branca: o colégio eleitoral.
Pelo sistema americano, o presidente é eleito em uma votação indireta: o candidato que vence a eleição em um Estado ganha todos os votos que essa unidade da federação tem dentro do colégio eleitoral.
Nesse esquema "o-vencedor-leva-tudo", não faz diferença nenhuma se o candidato perde a eleição em um Estado pela diferença de um voto ou 20 milhões de votos. Por isso, democratas e republicanos são levados a tomar uma decisão racional: não desperdiçar dinheiro fazendo campanha em um Estado em que não existem chances de vitória.
Já que o partido fadado à derrota joga a toalha e abandona a disputa no Estado, o partido favorito também toma outra decisão lógica: sem ter que enfrentar concorrência, resolve investir seus recursos em outra parte do país.
Como nos Estados Unidos não existe horário eleitoral gratuito no rádio e na TV, isso significa que milhões de eleitores chegarão ao dia da eleição sem terem visto anúncios de campanha e sem que os candidatos tenham pisado em seus Estados ou discutido os assuntos que porventura sejam prioritários ali.

Estados-pêndulo
Dos 50 Estados americanos, cerca de 30, que representam 60% da população, encontram-se nessa situação de abandono. As campanhas de Bush e Kerry resolveram concentrar seus esforços somente nos chamados "Estados-pêndulo" (ou "swing states"): aqueles cujos resultados serão definidos por margens muito pequenas de votos -como foi o caso da Flórida em 2000, onde o placar final marcou 2.912.790 para Bush e 2.912.253 para Gore (uma diferença de 537 votos, ou 0,01 ponto percentual).
Há quatro anos, 16 Estados tiveram resultados com diferenças inferiores a seis pontos percentuais -sendo que em Oregon, Novo México, Iowa e Wisconsin não passou de 0,4. O número de Estados-pêndulo nesta eleição, segundo analistas políticos, varia de 16 a 20, dependendo dos critérios de cada um.
"Essa é a fraqueza do nosso modelo de colégio eleitoral. Metade do país não tem realmente campanha eleitoral e isso é uma lástima", julga Kathleen Jamieson, diretora da Escola de Comunicação Annenberg, da Universidade da Pensilvânia, e autora de vários livros sobre campanhas presidenciais nos Estados Unidos.
Embora pareça uma aberração a existência do colégio eleitoral, seu uso ainda hoje pode ser justificado, segundo Larry Sabato, diretor do Centro para a Política, da Universidade da Virgínia. "O colégio eleitoral foi planejado para proteger os interesses dos Estados menores. Os "Founding Fathers" [pais da independência americana] foram muito cautelosos em relação a isso e advertiram contra a "tirania da maioria". Um voto direto resultaria em ainda mais Estados sendo ignorados. Iríamos ver candidatos fazendo campanhas somente nos Estados mais populosos."
Para quem se surpreende com o fato de que após o fiasco de 2000 os EUA não abandonaram o colégio eleitoral, Jamieson e Sabato dão razões práticas para a sua manutenção.
"Uma emenda à Constituição exige a ratificação de três quartos dos Estados. Isso significa que para derrotar uma proposta basta 13 Estados dizerem não. E mais de 13 Estados, 19 para ser exato, se beneficiam desse sistema", aponta Sabato.
"Se o partido no governo achasse que teria vantagens, talvez houvesse mudanças. Mas ele chegou lá por causa do colégio eleitoral. E o partido fora do poder não vê um cenário no qual possa ser uma vantagem no futuro. Lembre-se de que as previsões uma semana antes da eleição de 2000 eram de que Al Gore venceria no colégio eleitoral e Bush no voto popular", acrescenta Jamieson.

Primárias e abstenção
Outro problema sério com o sistema de escolha do presidente apontado pelos analistas é a definição das candidaturas por meio das primárias partidárias, que dão uma excessiva importância aos Estados que vêm primeiro no calendário das prévias. "Eu moro na Pensilvânia e jamais votei em uma primária que tivesse feito qualquer diferença no resultado final", diz Jamieson.
"O processo tornou Maine, New Hampshire e Iowa muito mais importantes do que deveriam ser, porque o vencedor ganha toda a atenção da mídia", afirma Curtis Gans, diretor do independente Comitê para o Estudo do Eleitorado Americano.
"Eu passei 85 dias de campanha somente em Iowa. Veja, Iowa é um grande Estado, mas 85 dias inteiros de campanha em um único Estado... Realmente não faz muito sentido, não é?", disse Michael Dukakis -candidato democrata derrotado por George Bush (pai do atual presidente) em 1988- em um simpósio na Universidade de Virgínia em 2001. A população de Iowa é de 3 milhões (cerca de 1% do total do país).
Gans também aponta entre as deficiências do sistema eleitoral americano o desinteresse da população: "Nós tivemos uma queda de participação do eleitor de 25% desde 1960. Menos de 10% dos eleitores jovens, entre 18 e 19 anos, votaram em 2002".
O índice de comparecimento às urnas em eleições presidenciais costuma ficar em torno de 50% (nas eleições para o Congresso não chega a 40%). Se considerarmos que apenas a metade dos eleitores priorizados por Bush e Kerry sairão de casa no dia 2 de novembro para votar, poderíamos concluir que a escolha do futuro presidente dos EUA vai ser definida por apenas um quinto do eleitorado do país.


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