São Paulo, quarta-feira, 08 de setembro de 2004

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ARTIGO

Não há causa, só o prazer de matar e morrer

DAVID BROOKS
DO "NEW YORK TIMES"

Temos sido forçados a assistir ao massacre de inocentes. Em Nova York, Madri, Moscou, Tel Aviv, Bagdá e Bali, vimos milhares de pessoas destruídas enquanto cuidavam de afazeres cotidianos.
Temos sido forçados a suportar o massacre de crianças. Quer sejam adolescentes diante de uma discoteca israelense ou estudantes de uma escola em Beslan, na Rússia, temos visto crianças visadas como alvos especiais.
Já deveríamos ter nos acostumado com o culto à morte que vem crescendo na periferia do mundo muçulmano. É um culto de pessoas que têm orgulho de declarar: "Vocês amam a vida, mas nós amamos a morte".


A essência do ato foi que um grupo de pessoas conviveu com centenas de crianças, olhou em seus olhos, ouviu seu choro e as explodiu pelos ares


É esse culto que enviou crianças indefesas para serem dizimadas nos campos de batalha da guerra entre Irã e Iraque, que treina crianças em idade pré-escolar para virarem bombas humanas, que transforma a morte em fetiche, que envia pessoas para cometerem assassinato em massa com alegria em seus corações.
Esse culto se liga a uma causa política, mas, parasiticamente, a estrangula. O culto à morte estrangulou o sonho de um Estado palestino. Os homens-bomba não levaram a paz à Palestina -levaram represálias. Os responsáveis pelos carros-bomba não estão fazendo os EUA se retirarem do Iraque -estão nos obrigando a prolongar nossa permanência no país. Agora o culto à morte está estrangulando a causa tchetchena. Não vai proporcionar a independência da Tchetchênia, mas derramamento de sangue.
Mas é justamente essa a idéia. O culto à morte não visa a causa que alega servir. Ele visa o puro e simples prazer de matar e morrer.
Ele visa massacrar pessoas, estando aqueles que cometem os massacres num estado de elevação espiritual. Ele visa sentir a liberdade total da barbárie -estar livre até mesmo da natureza humana, que nos manda amar as crianças e amar a vida. Ele visa o prazer do sadismo e do suicídio.
Já deveríamos estar acostumados a esse movimento de massas patológico. Já deveríamos conseguir falar dessas coisas. Mas, quando se olha a reação ocidental ao massacre de Beslan, vêem-se pessoas que se apressam a desviar sua atenção do horror fundamental desse ato, como se quisessem dizer: "Não queremos olhar dentro desse abismo. Não queremos reconhecer as partes da natureza humana manifestadas em Beslan. Alguma coisa solapa as categorias que usamos para viver nossas vidas, enfraquece nossa fé na bondade essencial do ser humano".
Três anos depois do 11 de Setembro, muitas pessoas -pessoas demais- já se tornaram especialistas em desviar seus olhos. Olhando para os editoriais e os pronunciamentos públicos feitos em reação a Beslan, percebe-se que eles ignoram aqueles que cometeram esse ato e buscam alvos mais convencionais para sua ira.
O editorial do "Boston Globe", que foi representativo da reação geral da imprensa americana, fez duas referências rápidas à barbárie dos terroristas, mas depois desviou-se rapidamente com longos trechos condenando Putin.
O chanceler holandês, Bernard Bot, falando em nome da União Européia, declarou: ""Todos os países precisam cooperar para prevenir tragédias como essa. Mas também gostaríamos de saber das autoridades russas como essa tragédia pôde acontecer".
Não foi uma tragédia. Foi uma operação cuidadosamente planejada de assassinato em massa. E não foram as autoridades russas que plantaram explosivos em cestas de basquete e atiraram em crianças pelas costas no momento em que elas tentavam fugir.
Sejam quais forem os horrores que os russos perpetraram contra os tchetchenos, seja qual for sua inépcia em reagir ao ataque, a natureza essencial desse ato foi o ato em si. Foi o fato de que um grupo de seres humanos pôde entrar numa escola, conviver com centenas de crianças, olhar em seus olhos, ouvir seu choro e depois fazê-las explodir pelos ares.
Dissertações serão escritas sobre os eufemismos da mídia para descrever esses assassinos -"separatistas" e "sequestradores". Três anos após o 11 de Setembro, muitos continuam sem conseguir falar desse mal. Eles ainda estão tentando racionalizar o terror.
As pessoas ainda são vítimas da ilusão diagnosticada por Paul Berman após o 11 de Setembro: "É a crença em que, no mundo moderno, mesmo os inimigos da razão não podem ser inimigos da razão. Mesmo os irracionais precisam ser racionais, de alguma maneira". Esse culto à morte não tem razão e está além do alcance da negociação. É isso que o torna tão assustador. É isso que faz com que tantas pessoas se empenhem numa espécie de fuga mental. Elas não querem encarar esse horror de frente. Por isso, buscam coisas mais compreensíveis para odiar.

Tradução de Clara Allain


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