São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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"Poderíamos ter evitado dez anos de pesadelos", diz escritora sérvia

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"Estou on line novamente, física e psicologicamente. Nós temos eletricidade, as linhas telefônicas estão funcionando, minha caixa de e-mails está cheia de mensagens com lágrimas de congratulações, de amigos preocupados, de pessoas que nem conheço e até de adversários prevendo tempos escuros. Não há polícia para nos proteger nem lixeiros para limpar os contêineres usados nas barricadas, a sujeira das ruas, também não sabemos se teremos pão depois de tantos dias de greve."
Assim começava a folha de diário que a escritora e roteirista de cinema sérvia Jasmina Tesanovic, 46, escreveu anteontem em Belgrado.
Durante os bombardeios da Otan à capital iugoslava, em 99, Jasmina manteve um diário em que relatava o que acontecia nas ruas e como o conflito nos Bálcãs alterava o dia-a-dia da população.
Ao final do conflito, Jasmina recolheu os textos e lançou-os em livro ("A War of My Own", traduzido para o português pela editora Temas e Debates, de Lisboa).
Desde então, Jasmina escreve diariamente sobre a vida em Belgrado e se corresponde virtualmente com Nuha al Radi, uma amiga iraquiana que vive exilada no Líbano. As cartas têm tom pessoal, mas Jasmina as torna disponíveis na Internet. A correspondência de ambas também vai virar livro -"The Globalization of Evil" (a globalização da maldade).
"Nós temos muito em comum. Ela é iraquiana e muçulmana e eu sou sérvia e descrente. Mas nós duas vivemos em países que sofreram sanções por causa de ditadores e enfrentamos dificuldades ao lidar com nossos filhos, famílias e sociedade", disse, em entrevista por e-mail à Folha.
Sobre os acontecimentos em Belgrado nas últimas semanas, Jasmina comenta: "Parece-me que, em poucos dias, estamos ganhando muita energia, medo e uma impressão de que não há volta. Mas, infelizmente, acho que ainda vou me sentir uma idiota política por algum tempo, por termos sido privados de informação, por termos sido impedidos de conseguir vistos, de viajar."
A escritora conta que, desde os dias que antecederam a eleição presidencial, em 24 de setembro, o clima das ruas de Belgrado era uma mistura de excitação e medo. "A temperatura estava agradável, as pessoas se reuniam nas praças, houve concertos de rock a céu aberto, parecia a excitação do fim da Guerra de Kosovo", disse.
"Senti que Belgrado é muito pequena para reunir todas aquelas pessoas, percebi que a temperatura dos termômetros de rua subia quanto mais pessoas se aglomeravam nas praças. É estranho perceber como as pessoas dominam a natureza e a injustiça."
Jasmina conta também que havia uma espécie de impulso coletivo, todos "queriam gastar", principalmente com comida, pois pensavam numa festa ou até na possível volta das privações.
"As pessoas iam aos supermercados e compravam o que havia, carne de porco, vinho, doces. Parecia que nos preparávamos para uma ceia de Natal", conta.
Jasmina fala sobre o pai nas cartas. "Ele é um ex-comunista e votou na oposição, com medo. Telefonou-me para dizer que estava temeroso de abrir a porta para o carteiro. Acho que ele está no mesmo "bunker" psicológico em que Milosevic deve estar se sentindo agora."
Jasmina está filmando as manifestações e o movimento nas ruas da cidade. As imagens serão usadas num documentário. Em 99, "A War of My Own" inspirou um filme, distribuído pela TV alemã e exibido no Festival de Cannes.
Jasmina se diz feliz, mas não afirma que consegue esquecer o que se passou nos Bálcãs nos últimos anos. "Tudo isso poderia ter acontecido em 1991, sem nenhuma revolução, e poderíamos ter evitado cinco guerras, dez anos de pesadelos e milhares de vítimas inocentes."



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