São Paulo, domingo, 8 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LEGADO DA REPRESSÃO
Especialistas desenvolvem técnicas para lidar com vítimas de tortura do regime militar de Pinochet
Psicólogos chilenos praticam 'torturologia'

OTÁVIO DIAS
enviado especial a Santiago

As violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-90) levaram psiquiatras e psicólogos chilenos a desenvolver uma nova "ciência": a "torturologia" ou "torturoterapia".
Os termos se referem às técnicas para identificar sequelas físicas e psicológicas de vítimas diretas e indiretas da repressão, assim como os tratamentos adequados.
Desde os anos 80, essa experiência tem sido documentada por profissionais de saúde de entidades de direitos humanos.
A Folha visitou a Fundação de Ajuda Social das Igrejas Cristãs (Fasic), organização não-governamental situada em Santiago que auxilia vítimas do regime militar.
Segundo a psiquiatra Eliana Horvitz, a repressão iniciada após o golpe de 1973 -e que perdurou durante grande parte da ditadura- tem consequências até hoje, oito anos após a democratização.
Entre as violações que deixam marcas mais profundas estão a morte ou desaparecimento de familiares, os anos de prisão ou exílio e a tortura.
"Um ex-torturado possui sequelas que exigem um diagnóstico e um tratamento específicos", diz.
Segundo ela, os médicos que começaram a atender torturados nos anos 70 não tinham elementos para compreender essas sequelas.
"Buscamos informações sobre como foram tratadas as vítimas dos campos de concentração nazistas, mas encontramos muito pouca literatura", afirmou.
"A necessidade de desenvolvermos a torturologia é um retrocesso vergonhoso para nossa profissão."
Ela cita problemas derivados da tortura: medo da morte, dores, ansiedade, mania de perseguição, baixa auto-estima, depressão, problemas digestivos e cerebrais, instabilidade, entre outros.
Os parentes de ex-torturados também sentiriam na pele os efeitos da tortura. "Muitas vítimas reproduzem em casa elementos da tortura", diz. Ela cita tratamentos prepotentes ou arbitrários, agressões verbais e físicas.
"Atendemos crianças pequenas que já pertencem à quarta geração de vítimas da ditadura", diz.
Desaparecidos
No caso de parentes de pessoas que sumiram persiste, muitos anos após os desaparecimentos, a expectativa de saber a verdade e localizar os restos mortais dos desaparecidos.
Em 1990, foi criada uma comissão para estabelecer o número oficial de mortos e desaparecidos. Segundo a lista, houve 2.095 execuções e 1.102 desaparecimentos. Cerca de 1.500 denúncias não foram comprovadas.
A comissão localizou parte dos restos mortais, em certos casos entregues aos familiares quase 20 anos depois. Mais de mil casos estão sem solução.
Segundo a agência de notícias "Associated Press", cerca de 50 mil chilenos foram exilados e milhares foram torturados.
Para Horvitz, vítimas de violações prejudicam involuntariamente seus descendentes ao tentar preservá-los dos fatos ocorridos.
"Alguns escondem as indignidades que sofreram. O segredo familiar faz com que os jovens não compreendam seus pais ou avós."
Jovens que sofrem exposição a esse conjunto de problemas apresentariam problemas de marginalização ou de comportamento, maior tendência ao alcoolismo e ao uso de drogas.
Os órfãos ou vítimas do regime militar também tenderiam a enfrentar maiores dificuldades econômicas devido à perda do chefe da família, ao estigma social e às dificuldades de se impor no mercado de trabalho.
"Muitos se recuperaram e tiveram sucesso. Outros ficaram definitivamente prejudicados", diz a psiquiatra.
A impunidade potencializaria os problemas: "Se houvesse justiça, seria mais fácil superá-los".
Em outubro, cerca de 80 pessoas foram atendidas pela Fasic, que conta atualmente com cinco profissionais de saúde. A equipe chegou a ter 25 membros.
²


O jornalista Otávio Dias viajou a Santiago a convite da Transbrasil



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.