São Paulo, domingo, 8 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DOCUMENTO
Texto fundamenta o pedido de detenção provisória encaminhado pelo juiz espanhol Baltasar Garzón ao Reino Unido
Leia a acusação ao general Pinochet

Associated Press
O juiz espanhol Baltasar Garzón, que pediu a detenção de Pinochet


da Redação

Leia a seguir introdução e a conclusão do documento que o juiz espanhol Baltasar Garzón enviou à Justiça britânica pedindo a "detenção provisória com vista à extradição" do general chileno Augusto Pinochet. O texto foi publicado pelo jornal francês "Le Monde" .
O documento foi redigido no dia 18 de outubro e fundamenta a detenção de Pinochet, que havia ocorrido dois dias antes em Londres, a pedido do próprio Garzón.
O juiz espanhol investiga casos de chilenos e estrangeiros mortos e torturados durante a ditadura de Pinochet (1973-90). O general chileno foi detido enquanto se recuperava de uma operação de hérnia de disco, numa clínica londrina.
Na semana passada, Pinochet venceu sua primeira batalha judicial. A Alta Corte de Londres reconheceu que, pelas leis britânicas, ele tem imunidade em relação às acusações de Garzón, pois seria chefe de Estado chileno à época em que os crimes teriam ocorrido.
O caso foi parar na Câmara dos Lordes, a mais alta instância jurídica do Reino Unido.
O órgão deve se pronunciar nesta semana a respeito do pedido de extradição, aprovado formalmente pelo governo espanhol na última sexta.
Dos fatos
Primeiro. Um mandado de prisão foi emitido em 16 de outubro, relacionado aos seguintes fatos:
Parágrafo único.
Foi estabelecido que, a partir de setembro de 1973, no Chile, e a partir de 1976, na Argentina, foi cometida, sob o manto da mais feroz repressão ideológica, uma série de atos delituosos contra os cidadãos e os residentes desses países. Esses atos obedeciam aos planos e às consignas previstos pelas estruturas do poder, cujo objetivo era a eliminação física, o desaparecimento, o sequestro e a prática prévia e generalizada de tortura de milhares de pessoas, conforme relatado no "relatório Rettig" (em 24 de abril de 1990, a comissão Rettig, composta por personalidades chilenas, apresentou o primeiro balanço oficial dos desaparecidos sob a ditadura, que seriam 3.000).
Foi formada uma coordenação em escala internacional, sob o nome de "operação Condor". Vários países, entre os quais o Chile e a Argentina, participaram dela. Nesse sentido, Augusto Pinochet Ugarte, então chefe das Forças Armadas e do Estado chilenos, desenvolveu atividades criminosas em coordenação com as autoridades militares da Argentina, entre 1976 e 1983 (...). Ele ordenou a eliminação física, a tortura, o sequestro e o desaparecimento de chilenos e de pessoas de outras nacionalidades, no Chile e fora do país, dentro do contexto das ações do serviço secreto (Dina) e de acordo com a acima mencionada "operação Condor". Entre esses casos, 79 não foram confirmados.
Um caso concreto, sem prejuízo de outros possíveis, foi o sequestro de Edgardo Enriquez Espinosa, em 30 de abril de 1976. Ele foi transferido aos campos de concentração de El Olimpo, Campo de Marte e Escola de Mecânica da Marinha (Esma), na Argentina. Depois disso, não se teve mais notícias dele.
Segundo. Nesse contexto, Augusto Pinochet Ugarte, nascido em Valparaíso (Chile) em 26 de novembro de 1915, portador da carteira de identidade chilena de número 1.128.923, aparece como líder (...) de uma organização internacional criada, em coordenação com outros responsáveis militares ou civis de outros países, principalmente a Argentina, para conceber, desenvolver e executar o planejamento sistemático de detenções ilegais (sequestros), torturas, deslocamentos forçados, assassinato e/ou desaparecimento de numerosas pessoas, incluindo argentinos, espanhóis, britânicos, americanos, chilenos e pessoas de outras nacionalidades. A meta: alcançar os objetivos políticos e econômicos da conspiração, exterminar a oposição política e numerosas pessoas por razões ideológicas, a partir de 1973, o que coincide com fatos semelhantes ocorridos na Argentina entre 1976 e 1983.
Terceiro. Até agora, 91 casos concretos formam o objeto da acusação feita a Augusto Pinochet Ugarte, mas nada impede que esse número venha a aumentar.(...)
˛
Do Direito
Primeiro. Os fatos relatados nesta resolução poderiam, para Augusto Pinochet Ugarte, constituir crime de genocídio, em razão de uma série de detenções ilegais seguidas de casos de assassinato ou de desaparecimento das 91 vítimas aqui em questão e que, após os testemunhos e depoimentos recolhidos no decorrer do procedimento, foram todas torturadas (...); um crime de terrorismo (...); um crime de tortura (...). Todos esses crimes estando incluídos enquanto tais no Código Penal em vigor no momento em que os fatos tiveram lugar.
Do mesmo modo, a qualificação jurídica e penal dos fatos se baseia nas seguintes normas internacionais:
a) A declaração de Moscou de 1943 sobre os crimes contra a humanidade, subscrita pelo Reino Unido, pelos EUA e pela URSS;
b) O estatuto do tribunal de Nurembergue de 1945, subscrito pelo Reino Unido;
c) A resolução de 16 de dezembro de 1946 da Assembléia Geral das Nações Unidas, que aprova os princípios dos estatutos e da sentença de Nurembergue;
d) A convenção das Nações Unidas de 9 de dezembro de 1948, contra o genocídio;
e) O pacto dos direitos civis e políticos das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966;
f) A resolução de dezembro de 1973 da Assembléia Geral da ONU, sobre os julgamentos de crimes contra a humanidade;
g) A convenção contra a tortura de 10 de dezembro de 1984;
h) A declaração da Assembléia Geral da ONU de 1992 sobre o desaparecimento forçado de pessoas;
i) A convenção européia sobre a repressão do terrorismo de 27 de janeiro de 1977.
Segundo essas determinações, aplicáveis ao Reino Unido, os crimes dessa espécie são imprescritíveis, seus responsáveis não gozam de imunidade diplomática e não podem obter o estatuto de refugiado ou asilado político. Todos os Estados do mundo são obrigados a persegui-los e a colaborar com outros Estados que procuram punir tais crimes.
Segundo. Conforme já foi visto, foi criada uma organização armada que aproveitou a estrutura militar e a usurpação do poder para institucionalizar um regime terrorista, com toda impunidade. Este último transtornou a ordem constitucional com o objetivo de levar adiante, com eficácia, o plano de desaparecimento e de eliminação sistemática de membros de grupos nacionalistas. Contando com a ajuda de outros países, e especialmente da coordenação com a Argentina, impôs deslocamentos forçados, sequestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos.
A jurisdição espanhola é competente para tratar do procedimento de acatamento da queixa, tal qual ela é estabelecida nos autos de 28 de junho de 1996, de 25 de março, 11 de maio e 16 de outubro de 1998. Por essa razão, (...) Augusto Pinochet Ugarte deve ser posto em detenção provisória incondicional (...). Graças ao que serão expedidos os mandados de busca e de captura internacionais com o fim de prendê-lo e proceder a sua extradição. (...)
Do pedido:
- que seja prolongada a detenção provisória incondicional de Augusto Pinochet Ugarte pelos fatos descritos nesta resolução, que abrangem os crimes supostos de genocídio, terrorismo e tortura (...);
- que seja entregue com urgência às autoridades judiciárias britânicas um mandado de prisão internacional (...).
Assim ordena e assina M. D. Baltasar Garzón Real, juiz magistrado junto ao tribunal central de instrução nē 5 da Audiência Nacional.
Disposição: em virtude da qual se cumpre o que foi previsto.


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.