São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008

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análise

Crise expõe hipocrisia do Ocidente

IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O conflito que se desenha no sul do Cáucaso dará mais uma chance para o mundo tomar o pulso da hipocrisia do Ocidente. Pelos últimos quatro anos, EUA e Europa bajularam a pequena Geórgia, com esperanças de fincar ali a bandeira da aliança militar ocidental e, de quebra, salvaguardar um corredor estratégico de escoamento de gás da Ásia Central.
Assim, Mikhail Saakashvili foi vendido mundo afora como um sopro de democracia num mar de ditaduras clientes de Moscou. Ocorre que, como na Ucrânia, do movimento que levou à maior democratização do país restou apenas uma lembrança.
Mas tudo isso é quase lateral. A Rússia não abandona seus interesses na Ásia Central desde os czares, e existe uma verdadeira paranóia, não desprovida de senso estratégico, por parte do establishment militar russo sobre as intenções da Otan.
A questão econômica é central, pois o até hoje sonhado gasoduto Nabucco, que os europeus querem construir ligando a Turquia à Áustria, se conecta aos Estados do mar Cáspio através da Geórgia. Com o Nabucco, projeto de viabilidade duvidosa, a União Européia queria livrar-se da dependência do gás russo.
Aí entra a Otan. Saakashvili fez o pedido formal de entrada na aliança com a esperança de proteger-se contra o Kremlin, mas em Bruxelas a idéia era mais ampla: com um aliado no Cáucaso, a Otan poderia projetar influência numa região dominada pelos russos.
A partir da chegada de Saakashvili ao poder em 2004, o Kremlin atuou para desestabilizar seu governo, com a justificativa popularíssima de defesa das minorias russas na Geórgia. Desde 2007, a Rússia fortaleceu sua posição na Abkházia, a outra região separatista do país. Há hoje lá um efetivo militar muito mais robusto que o da Ossétia, e com isso Saakashvili foi obrigado a negociar com os rebeldes locais, fragilizando-se internamente.
Assim, a escalada do conflito por parte da Geórgia, se foi isso mesmo, sugere um grito de Saakashvili a seus aliados ocidentais. Ele sabe ser impossível ganhar uma guerra contra Moscou ou rebeldes por ela apoiados. Atacando a região separatista mais fraca, onde só havia cerca de mil soldados russos hoje, jogou para trazer o conflito a um novo patamar, saindo das escaramuças locais ignoradas pelo Ocidente.
A cena de tanques russos cruzando fronteiras arrepia várias espinhas. Não faltará quem peça uma intervenção semelhante à que a Otan praticou em Kosovo. Mas em 1999 a Rússia estava de joelhos, e a Sérvia é encravada na Europa. Agora, reerguidos sobre hidrocarbonetos e uma sólida autocracia, os russos não vão deixar baratas as baixas infligidas.
Vai ser um exercício interessante ver as democracias ocidentais fazendo malabarismos para tentar acomodar Vladimir Putin e Dmitri Medvedev. Claro, há o risco de uma "marcha da insensatez" levar a escalada a algo impensável, um choque Rússia-Otan. Mas é bem mais provável que vejamos um espetáculo de hipocrisia, com a Geórgia pagando a conta.


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