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ANÁLISE
Temor antecipa mortes da guerra que começa e que pode atingir os corações americanos
EUA expõem mais tristeza que pavor
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Na tarde de domingo, muitos
nova-iorquinos foram ver a exposição do neo-impressionista Signac ou os desenhos de Bruegel.
Na saída do Metropolitan Museum, ligavam seus celulares. Encontravam recados urgentes e,
sentados nos degraus da escadaria, faziam ligações respondendo
aos recados e assim ficavam sabendo que começara o bombardeio contra o Taleban. Perguntas,
caras tensas, mas poucas exclamações, pois não era uma surpresa para ninguém: a sucessão de
declarações e intimações da semana passada deixava adivinhar
que a guerra era iminente.
O Metropolitan Museum, nesta
época, não é um lugar seguro. Afinal, o Taleban destruiu propositalmente extraordinários monumentos budistas no Afeganistão.
Acharia a mesma graça, senão
mais, em pulverizar quadros renascentistas ou estátuas gregas.
Essa constatação não afastou o
público: os museus estão cheios.
Em época de horror, a arte deve
ser uma consolação: uma lembrança de que a cultura não produz só cadáveres.
No domingo, em Nova York,
depois do anúncio, pararam (ou
quase) as "open houses" -as
"casas abertas", tradição do mercado imobiliário americano, em
que os apartamentos à venda ficam abertos ao público durante
algumas horas, quase sempre aos
domingos. Quinn Lemley, agente
imobiliária, fechando seu dia
num apartamento da Central
Park West, comenta que é difícil
encontrar o entusiasmo necessário para comprar e construir um
"ninho" enquanto começa uma
guerra.
No norte de Manhattan, na Universidade Columbia, no domingo
terminava o "Parents Week-end"
-o fim de semana em que, tradicionalmente, os estudantes de
primeiro ano (que moram na faculdade desde o fim de agosto) recebem a visita de seus pais, vários
dos quais vêm de muito longe. As
despedidas não foram festivas como de costume. Foram abraços
prolongados, apreensivos. Circular no país pode se tornar difícil, e
as famílias ficariam afastadas, divididas. Pior, novos atentados podem acontecer a cada instante: é
claro para todos que o bombardeio é o começo de uma longa
guerra em que o inimigo voltará a
atacar assim que puder.
Durante a tarde, é repetida várias vezes, no rádio, uma recomendação do prefeito de Nova
York, Rudy Giuliani. Pede que as
pessoas circulem com algum documento de identidade (coisa que
normalmente não é obrigatória
nos EUA), mas levem sua vida
normalmente. Por exemplo, sugere que todos usem o metrô e os
trens sem medo e não recorram
ao transporte individual como
sendo mais seguro. Nas próximas
semanas, ele acrescenta, só será
necessária mais paciência, pois as
medidas de segurança complicarão o dia-a-dia.
À noite, indo a Boston, paro por
volta das 20h30 no Crossroads
Café -o café da encruzilhada-
de Acton, Massachusetts. Tudo
parece normal. Há famílias com
crianças atacando seus hambúrgueres com vontade. Ao redor do
bar, dos oito televisores à disposição dos clientes, seis estão sintonizados no jogo de futebol americano -que é o programa clássico
do domingo à noite. Apenas dois
estão transmitindo a CNN e, mesmo assim, com o volume quase
imperceptível. Aparece o trecho
da fita pré-gravada por Osama
bin Laden em que ele promete
terror aos americanos. Há um homem sozinho que presta atenção
e sacode a cabeça, num gesto de
comiseração. Poucos minutos depois, um casal de jovens senta
perto dele e mostra a mesma comiseração quando a CNN retransmite a declaração do presidente Bush. O homem considera
o casal e de novo sacode a cabeça,
como sacudira para Bin Laden.
Nesses dois primeiros dias, os
americanos parecem mais tristes
do que apavorados.
Nessa tristeza, há a antecipação
das destruições e das mortes da
guerra que começa. Também há o
receio de que algumas liberdades
sejam sacrificadas em troca de segurança. E há o medo de que o
conflito mais doloroso não aconteça nas montanhas do Afeganistão, mas nas praças e nos corações
americanos.
ccalligari@uol.com.br
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