São Paulo, terça-feira, 09 de outubro de 2001

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ANÁLISE

Temor antecipa mortes da guerra que começa e que pode atingir os corações americanos

EUA expõem mais tristeza que pavor

CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA

Na tarde de domingo, muitos nova-iorquinos foram ver a exposição do neo-impressionista Signac ou os desenhos de Bruegel. Na saída do Metropolitan Museum, ligavam seus celulares. Encontravam recados urgentes e, sentados nos degraus da escadaria, faziam ligações respondendo aos recados e assim ficavam sabendo que começara o bombardeio contra o Taleban. Perguntas, caras tensas, mas poucas exclamações, pois não era uma surpresa para ninguém: a sucessão de declarações e intimações da semana passada deixava adivinhar que a guerra era iminente.
O Metropolitan Museum, nesta época, não é um lugar seguro. Afinal, o Taleban destruiu propositalmente extraordinários monumentos budistas no Afeganistão. Acharia a mesma graça, senão mais, em pulverizar quadros renascentistas ou estátuas gregas. Essa constatação não afastou o público: os museus estão cheios. Em época de horror, a arte deve ser uma consolação: uma lembrança de que a cultura não produz só cadáveres.
No domingo, em Nova York, depois do anúncio, pararam (ou quase) as "open houses" -as "casas abertas", tradição do mercado imobiliário americano, em que os apartamentos à venda ficam abertos ao público durante algumas horas, quase sempre aos domingos. Quinn Lemley, agente imobiliária, fechando seu dia num apartamento da Central Park West, comenta que é difícil encontrar o entusiasmo necessário para comprar e construir um "ninho" enquanto começa uma guerra.
No norte de Manhattan, na Universidade Columbia, no domingo terminava o "Parents Week-end" -o fim de semana em que, tradicionalmente, os estudantes de primeiro ano (que moram na faculdade desde o fim de agosto) recebem a visita de seus pais, vários dos quais vêm de muito longe. As despedidas não foram festivas como de costume. Foram abraços prolongados, apreensivos. Circular no país pode se tornar difícil, e as famílias ficariam afastadas, divididas. Pior, novos atentados podem acontecer a cada instante: é claro para todos que o bombardeio é o começo de uma longa guerra em que o inimigo voltará a atacar assim que puder.
Durante a tarde, é repetida várias vezes, no rádio, uma recomendação do prefeito de Nova York, Rudy Giuliani. Pede que as pessoas circulem com algum documento de identidade (coisa que normalmente não é obrigatória nos EUA), mas levem sua vida normalmente. Por exemplo, sugere que todos usem o metrô e os trens sem medo e não recorram ao transporte individual como sendo mais seguro. Nas próximas semanas, ele acrescenta, só será necessária mais paciência, pois as medidas de segurança complicarão o dia-a-dia.
À noite, indo a Boston, paro por volta das 20h30 no Crossroads Café -o café da encruzilhada- de Acton, Massachusetts. Tudo parece normal. Há famílias com crianças atacando seus hambúrgueres com vontade. Ao redor do bar, dos oito televisores à disposição dos clientes, seis estão sintonizados no jogo de futebol americano -que é o programa clássico do domingo à noite. Apenas dois estão transmitindo a CNN e, mesmo assim, com o volume quase imperceptível. Aparece o trecho da fita pré-gravada por Osama bin Laden em que ele promete terror aos americanos. Há um homem sozinho que presta atenção e sacode a cabeça, num gesto de comiseração. Poucos minutos depois, um casal de jovens senta perto dele e mostra a mesma comiseração quando a CNN retransmite a declaração do presidente Bush. O homem considera o casal e de novo sacode a cabeça, como sacudira para Bin Laden.
Nesses dois primeiros dias, os americanos parecem mais tristes do que apavorados.
Nessa tristeza, há a antecipação das destruições e das mortes da guerra que começa. Também há o receio de que algumas liberdades sejam sacrificadas em troca de segurança. E há o medo de que o conflito mais doloroso não aconteça nas montanhas do Afeganistão, mas nas praças e nos corações americanos.

ccalligari@uol.com.br


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