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AFEGANISTÃO
Em Faizabad, o clima é de "já ganhou" entre os simpatizantes da Aliança do Norte
Capital rebelde comemora bombardeio americano
KENNEDY ALENCAR
ENVIADO ESPECIAL AO AFEGANISTÃO
Visto de uma das poucas janelas
do Antonov-26, o norte do Afeganistão parece um deserto cheio de
montanhas. Quarenta e cinco minutos depois de deixar Dushanbe,
no vizinho Tadjiquistão, surge o
rio Kupcha, em cujas margens
floresce um vale verde raro nessa
região. Fabricado há mais de 20
anos, o avião soviético literalmente dá um mergulho rápido e assustador para pousar na pista de
terra do aeroporto de Faizabad, a
capital da Aliança do Norte, coalizão político-militar que luta contra o Taleban, grupo extremista
islâmico que controla a maior
parte do Afeganistão.
Apesar de o Taleban nunca ter
dado ordens em Faizabad, o estado das instalações do aeroporto,
com pequenos prédios destruídos
por bombardeios e paredes que
ainda têm marcas de bala, é um
retrato comum da zona de guerra
em que se transformou o Afeganistão nas duas últimas décadas.
No aeroporto, muçulmanos
com seus turbantes e camisões
(marufih) típicos cercam os 40
jornalistas que desembarcam a
bagagem que tem de tudo -modernas ilhas de edição de TV, geradores de eletricidade a diesel,
dezenas de caixa de água mineral,
comida, fogão e forno microondas. Candidatos a tradutor e a
motorista oferecem seus serviços.
Na estrada que beira o aeroporto,
agricultores montados em pequeninos jegues passam acenando
para os visitantes, numa demonstração da tradicional hospitalidade afegã.
Atiqhllah Darkhani, um jovem
de 21 anos que trabalha como tradutor da Concern, uma ONG irlandesa que alimenta desde 1998
cerca de 150 mil afegãos, diz que
todo o país já está ciente do ataque
da véspera a Cabul e outras cidades do país. "Quem não escutou
na rádio ontem, ficou sabendo
hoje [ontem" de manhã. Foi uma
ótima notícia", diz. Atiqhlla.
Até nas vilas mais distantes de
cidades como Faizabad se escuta a
rádio inglesa BBC, que tem programas nos idiomas do Afeganistão, como o pushtu e o dari. Ouve-se também a rádio nacional do
Irã, país inimigo do Taleban.
Indagado a respeito da opinião
geral das pessoas sobre os bombardeios de anteontem, Atiqhllah
responde que é a mesma que a
sua: "Estamos felizes porque vai
ser bom para o futuro do Afeganistão. O Taleban vai deixar o poder". Mais tarde, num passeio pelo centro da velha e da nova Faizabad, constata-se o mesmo clima
de "já ganhou" entre os simpatizantes da Aliança do Norte. Praticamente toda a população da Província de Badakshan, cuja capital
é Faizabad, torce pelos oposicionistas e acredita que com o apoio
americano será questão de tempo
derrubar o Taleban.
"Quero que a América (EUA)
mate o Taleban", afirma Said Hamed, que diz ter 21 anos, mas aparenta quase 40. As difíceis condições de vida marcam o rosto e o
corpo das pessoas. É raro encontrar alguém com dentes bem cuidados. A expectativa média de vida do homem afegão é de 43 anos.
Cordial, Hamed se oferece para
mostrar a cidade e se ofende
quando o repórter diz querer pagar por isso. "Não, não, o sr. é
uma visita. Hoje é um dia de alegria para mim", afirma ele, que
conta com orgulho ser estudante
de inglês há mais de 10 anos.
O passeio começa pela cidade
nova, que tem ruas largas de terra
e habitações simples de tijolo com
acabamento em barro. Na Faizabad velha, a diferença é que as
ruas são estreitas, mais esburacadas e com um comércio intenso,
que passa a impressão de que todos os moradores são comerciantes ou agricultores.
Além da "felicidade" com o ataque dos Estados Unidos, o outro
assunto da cidade é o cerco a Cabul preparado pela Aliança do
Norte. Os rebeldes que controlam
parte do norte do país, têm duas
grandes frentes de batalha. A primeira é a oeste, onde se planeja
chegar a Mazar-e-Sharif e assim
controlar todo o norte. A segunda
é a sul, que sai de Fayzabad, passa
pelo vale do Pansheer e cujas linhas de combate estão a menos
de 40 km de Cabul.
A Aliança do Norte anunciou
ontem que atacou Mazar-e-Sharif
em uma ofensiva coordenada
com os bombardeios anglo-americanos ao território afegão controlado pelo Taleban. Os principais alvos foram o aeroporto e
instalações militares. Três províncias do norte também foram atacadas, mas a ofensiva não foi de
grande envergadura.
Se obtiverem o controle de Mazar-e-Sharif e Cabul, os próximos
passos dos rebeldes serão Herat,
cidade do oeste e próxima à fronteira, e Candahar, cidade do sul
onde fica a cúpula do Taleban. A
milícia religiosa tem cerca de 50
mil soldados e mobilizou pelo
menos outros 50 mil para fazer
frente à Aliança do Norte, que tinha cerca de 15 mil homens, mas
vem ganhando adesões desde que
os Estados Unidos começaram a
ameaçar e enfraquecer internamente o Taleban.
"As bombas dos americanos
vão nos ajudar a derrotar o Taleban", diz Mohammad Anwer,
que gostaria mesmo é que tropas
terrestres dos EUA entrassem no
país e fizessem o serviço por completo. "Mas acho que eles têm um
pouco de medo de lutar no chão, e
nós estamos mais acostumados",
diz ele, um homem de 30 anos que
está levando um caminhão cheio
de suprimentos para os soldados
da Aliança do Norte no Vale do
Pansheer.
Além de caminhões com alimentos e equipamento militar,
velhos veículos blindados passam
por Faizabad. Há um monte deles
aos pedaços perto de ruínas de
prédios do governo que foram
bombardeados na guerra civil
afegã. Esses blindados são herança da ocupação soviética (1979-1989) e servem para desmonte, tirando-se peças de reposição. O
velho Antonov-26, que a Aliança
do Norte usa para transportar tropas, trabalhadores de ONGs e jornalistas, é parte dessa herança.
É também em Faizabad que está
instalado o governo do Afeganistão derrubado pelo Taleban em
1996 e reconhecido até hoje pela
ONU (Organização das Nações
Unidas). O presidente deposto,
Burhanuddin Rabbani, reside
parte do ano na cidade.
Apesar de todo o discurso anti-Taleban e de permitir que as meninas frequentem a escola, os
apoiadores dos rebeldes mantém
hábitos tão machistas quanto os
impostos pela milícia religiosa
que se recusa a entregar Osama
bin Laden, o principal acusado de
ser o responsável pelos ataques a
Nova York e Washington.
Um desses hábitos é obrigar as
mulheres a usar a burka, a máscara de pano para cobrir o rosto que
normalmente tem uma tela de
renda na altura dos olhos. "A mulher não deve ser vista por estranhos. Só pelo marido ou pelos homens da sua casa", diz Atiqhllah.
Encontrar essas mulheres totalmente cobertas é uma experiência
incômoda. Mesmo sem poderem
ser vistas, abaixam a cabeça quando passam por um homem estranho. Costumam andar do outro
lado da rua se um homem se
aproxima. E normalmente falam
baixo e pouco com os vendedores
quando saem de casa para comprar alguma coisa.
O incômodo triste em relação às
mulheres de burka fica ainda
maior quando comparado à liberdade das crianças, que brincam
nas ruas empoeiradas e nos regos
do esgoto a céu aberto da nova
Faizabad. Meninas de 11 anos, como a pequena Shakilla, não são
nada tímidas e simpaticamente
perguntam, em inglês: "Como vai
você?". Shakilla fala um inglês
monossilábico, como muitos outros meninos e meninas que se divertiram dizendo alguma coisa
para o repórter da Folha.
Essa descontração e liberdade
de se dirigir a um homem é
abruptamente cortadas por volta
dos 15 anos, quando a adolescente
já é considerada mulher e precisa
se dar ao respeito segundo a cultura de muitos países muçulmanos. A sensação é que elas são jogadas numa espécie de prisão pública depois de anos de liberdade.
Atiqhllah diz não concordar
com a obrigatoriedade da burka,
mas argumenta que é o costume
local e que muitas mulheres vêem
a vestimenta "como uma forma
de proteção". "Não julgue com os
seus olhos", diz ele, acostumado a
lidar com estrangeiros por trabalhar numa ONG irlandesa.
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