São Paulo, terça-feira, 09 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AFEGANISTÃO

Em Faizabad, o clima é de "já ganhou" entre os simpatizantes da Aliança do Norte

Capital rebelde comemora bombardeio americano

KENNEDY ALENCAR
ENVIADO ESPECIAL AO AFEGANISTÃO

Visto de uma das poucas janelas do Antonov-26, o norte do Afeganistão parece um deserto cheio de montanhas. Quarenta e cinco minutos depois de deixar Dushanbe, no vizinho Tadjiquistão, surge o rio Kupcha, em cujas margens floresce um vale verde raro nessa região. Fabricado há mais de 20 anos, o avião soviético literalmente dá um mergulho rápido e assustador para pousar na pista de terra do aeroporto de Faizabad, a capital da Aliança do Norte, coalizão político-militar que luta contra o Taleban, grupo extremista islâmico que controla a maior parte do Afeganistão.
Apesar de o Taleban nunca ter dado ordens em Faizabad, o estado das instalações do aeroporto, com pequenos prédios destruídos por bombardeios e paredes que ainda têm marcas de bala, é um retrato comum da zona de guerra em que se transformou o Afeganistão nas duas últimas décadas.
No aeroporto, muçulmanos com seus turbantes e camisões (marufih) típicos cercam os 40 jornalistas que desembarcam a bagagem que tem de tudo -modernas ilhas de edição de TV, geradores de eletricidade a diesel, dezenas de caixa de água mineral, comida, fogão e forno microondas. Candidatos a tradutor e a motorista oferecem seus serviços. Na estrada que beira o aeroporto, agricultores montados em pequeninos jegues passam acenando para os visitantes, numa demonstração da tradicional hospitalidade afegã.
Atiqhllah Darkhani, um jovem de 21 anos que trabalha como tradutor da Concern, uma ONG irlandesa que alimenta desde 1998 cerca de 150 mil afegãos, diz que todo o país já está ciente do ataque da véspera a Cabul e outras cidades do país. "Quem não escutou na rádio ontem, ficou sabendo hoje [ontem" de manhã. Foi uma ótima notícia", diz. Atiqhlla.
Até nas vilas mais distantes de cidades como Faizabad se escuta a rádio inglesa BBC, que tem programas nos idiomas do Afeganistão, como o pushtu e o dari. Ouve-se também a rádio nacional do Irã, país inimigo do Taleban.
Indagado a respeito da opinião geral das pessoas sobre os bombardeios de anteontem, Atiqhllah responde que é a mesma que a sua: "Estamos felizes porque vai ser bom para o futuro do Afeganistão. O Taleban vai deixar o poder". Mais tarde, num passeio pelo centro da velha e da nova Faizabad, constata-se o mesmo clima de "já ganhou" entre os simpatizantes da Aliança do Norte. Praticamente toda a população da Província de Badakshan, cuja capital é Faizabad, torce pelos oposicionistas e acredita que com o apoio americano será questão de tempo derrubar o Taleban.
"Quero que a América (EUA) mate o Taleban", afirma Said Hamed, que diz ter 21 anos, mas aparenta quase 40. As difíceis condições de vida marcam o rosto e o corpo das pessoas. É raro encontrar alguém com dentes bem cuidados. A expectativa média de vida do homem afegão é de 43 anos.
Cordial, Hamed se oferece para mostrar a cidade e se ofende quando o repórter diz querer pagar por isso. "Não, não, o sr. é uma visita. Hoje é um dia de alegria para mim", afirma ele, que conta com orgulho ser estudante de inglês há mais de 10 anos.
O passeio começa pela cidade nova, que tem ruas largas de terra e habitações simples de tijolo com acabamento em barro. Na Faizabad velha, a diferença é que as ruas são estreitas, mais esburacadas e com um comércio intenso, que passa a impressão de que todos os moradores são comerciantes ou agricultores.
Além da "felicidade" com o ataque dos Estados Unidos, o outro assunto da cidade é o cerco a Cabul preparado pela Aliança do Norte. Os rebeldes que controlam parte do norte do país, têm duas grandes frentes de batalha. A primeira é a oeste, onde se planeja chegar a Mazar-e-Sharif e assim controlar todo o norte. A segunda é a sul, que sai de Fayzabad, passa pelo vale do Pansheer e cujas linhas de combate estão a menos de 40 km de Cabul.
A Aliança do Norte anunciou ontem que atacou Mazar-e-Sharif em uma ofensiva coordenada com os bombardeios anglo-americanos ao território afegão controlado pelo Taleban. Os principais alvos foram o aeroporto e instalações militares. Três províncias do norte também foram atacadas, mas a ofensiva não foi de grande envergadura.
Se obtiverem o controle de Mazar-e-Sharif e Cabul, os próximos passos dos rebeldes serão Herat, cidade do oeste e próxima à fronteira, e Candahar, cidade do sul onde fica a cúpula do Taleban. A milícia religiosa tem cerca de 50 mil soldados e mobilizou pelo menos outros 50 mil para fazer frente à Aliança do Norte, que tinha cerca de 15 mil homens, mas vem ganhando adesões desde que os Estados Unidos começaram a ameaçar e enfraquecer internamente o Taleban.
"As bombas dos americanos vão nos ajudar a derrotar o Taleban", diz Mohammad Anwer, que gostaria mesmo é que tropas terrestres dos EUA entrassem no país e fizessem o serviço por completo. "Mas acho que eles têm um pouco de medo de lutar no chão, e nós estamos mais acostumados", diz ele, um homem de 30 anos que está levando um caminhão cheio de suprimentos para os soldados da Aliança do Norte no Vale do Pansheer.
Além de caminhões com alimentos e equipamento militar, velhos veículos blindados passam por Faizabad. Há um monte deles aos pedaços perto de ruínas de prédios do governo que foram bombardeados na guerra civil afegã. Esses blindados são herança da ocupação soviética (1979-1989) e servem para desmonte, tirando-se peças de reposição. O velho Antonov-26, que a Aliança do Norte usa para transportar tropas, trabalhadores de ONGs e jornalistas, é parte dessa herança.
É também em Faizabad que está instalado o governo do Afeganistão derrubado pelo Taleban em 1996 e reconhecido até hoje pela ONU (Organização das Nações Unidas). O presidente deposto, Burhanuddin Rabbani, reside parte do ano na cidade.
Apesar de todo o discurso anti-Taleban e de permitir que as meninas frequentem a escola, os apoiadores dos rebeldes mantém hábitos tão machistas quanto os impostos pela milícia religiosa que se recusa a entregar Osama bin Laden, o principal acusado de ser o responsável pelos ataques a Nova York e Washington.
Um desses hábitos é obrigar as mulheres a usar a burka, a máscara de pano para cobrir o rosto que normalmente tem uma tela de renda na altura dos olhos. "A mulher não deve ser vista por estranhos. Só pelo marido ou pelos homens da sua casa", diz Atiqhllah.
Encontrar essas mulheres totalmente cobertas é uma experiência incômoda. Mesmo sem poderem ser vistas, abaixam a cabeça quando passam por um homem estranho. Costumam andar do outro lado da rua se um homem se aproxima. E normalmente falam baixo e pouco com os vendedores quando saem de casa para comprar alguma coisa.
O incômodo triste em relação às mulheres de burka fica ainda maior quando comparado à liberdade das crianças, que brincam nas ruas empoeiradas e nos regos do esgoto a céu aberto da nova Faizabad. Meninas de 11 anos, como a pequena Shakilla, não são nada tímidas e simpaticamente perguntam, em inglês: "Como vai você?". Shakilla fala um inglês monossilábico, como muitos outros meninos e meninas que se divertiram dizendo alguma coisa para o repórter da Folha.
Essa descontração e liberdade de se dirigir a um homem é abruptamente cortadas por volta dos 15 anos, quando a adolescente já é considerada mulher e precisa se dar ao respeito segundo a cultura de muitos países muçulmanos. A sensação é que elas são jogadas numa espécie de prisão pública depois de anos de liberdade.
Atiqhllah diz não concordar com a obrigatoriedade da burka, mas argumenta que é o costume local e que muitas mulheres vêem a vestimenta "como uma forma de proteção". "Não julgue com os seus olhos", diz ele, acostumado a lidar com estrangeiros por trabalhar numa ONG irlandesa.


Texto Anterior: Repercussão
Próximo Texto: Tragédia: Aviões se chocam e 118 morrem na Itália
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.