|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO
O que Bush quer que esqueçamos
ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"
Bush falou anteontem a uma
platéia em Cincinnati sobre
"guerreiros nucleares". Esqueçamos por um instante que ainda
não podemos provar que Saddam
Hussein possui armas nucleares.
Esqueçamos que, nesse discurso,
tudo o que Bush fez foi cozinhar e
reapresentar todos os ""se", os
"pode ser" e os "possivelmente"
contidos nas alegações mal fundamentadas do historicamente
desonesto dossiê de Tony Blair.
Não. Temos de combater ""guerreiros nucleares". É isso o que
precisamos fazer para justificar
toda a farsa que nos está sendo
imposta pela Casa Branca.
Esqueçamos os 15 palestinos,
incluindo uma criança de 12 anos,
mortos por Israel poucas horas
antes de Bush fazer seu discurso;
esqueçamos que, quando aviões
de Israel mataram nove crianças
palestinas em julho, ao lado de
um militante, o premiê israelense,
Ariel Sharon -"um homem de
paz", segundo Bush-, descreveu
o massacre como "um grande êxito". Esqueçamos, porque Israel
está do nosso lado.
Lembre-se sempre de usar a palavra "terror". Use-a quando falar
de Saddam Hussein, de Osama
bin Laden, de Iasser Arafat ou de
qualquer pessoa que se opõe a Israel ou aos EUA. Bush a usou em
seu discurso, 30 vezes em meia
hora. Uma vez por minuto.
Mas vejamos o que realmente
devemos esquecer se quisermos
apoiar toda essa loucura.
O mais importante é que precisamos esquecer que o presidente
Reagan despachou um enviado
para encontrar-se com Saddam
em dezembro de 1983. É essencial
esquecer isso por três motivos.
Em primeiro lugar, porque o
terrível Saddam já estava usando
gás contra os próprios iranianos
na época, e essa é uma das razões
pelas quais agora querem que façamos guerra contra ele.
Em segundo lugar, porque o enviado foi ao Iraque para organizar
a reabertura da embaixada americana e obter relações melhores
com o Açougueiro de Bagdá. Em
terceiro lugar, porque o enviado
era -surpresa!- Donald Rumsfeld. Talvez você ache estranho
que Rumsfeld, durante as entrevistas coletivas em que se mostra
tão disposto a bater papo, ainda
não tenha conversado conosco
sobre essa informação interessante. Seria de se esperar que ele pudesse querer esclarecer sobre a
natureza malévola do criminoso
com o qual trocou calorosos apertos de mão. Mas não.
Precisamos esquecer, também,
que, em 1988, quando Saddam
usou gás para destruir a população de Halabja, ao lado de dezenas de milhares de outros curdos
-quando, nas palavras dos senhores Bush, Cheney, Blair, Straw
etc., ele ""usou gás contra seu próprio povo"-, o presidente Bush,
pai, lhe forneceu US$ 500 milhões
em subsídios do governo americano para comprar produtos agrícolas dos EUA. Precisamos esquecer que, no ano seguinte, depois que o genocídio de Saddam
se completou, o presidente Bush,
pai, dobrou esse subsídio e o fez
acompanhar por germes de antraz, helicópteros e os notórios
materiais "de uso duplo", que podiam servir para fabricar armas
químicas e biológicas.
E, quando Bush filho promete à
população iraquiana "uma nova
era de esperança" e democracia
após a destruição de Saddam, como ele fez anteontem, devemos
esquecer que os americanos prometeram ao Paquistão e ao Afeganistão uma nova era de esperança
após a derrota soviética, em 1980
-e não fizeram nada.
Precisamos esquecer como o
presidente Bush, pai, exortou os
iraquianos a revoltar-se contra
Saddam em 1991 -e, quando eles
obedeceram, não fez nada. Devemos esquecer como a América
prometeu à Somália uma nova
era de esperança em 1993 e abandonou o país à míngua.
Precisamos esquecer como
Bush filho prometeu "ficar ao lado" do Afeganistão antes de dar
início aos bombardeios, no ano
passado -e agora deixou o país
num caos econômico feito de barões das drogas, senhores de
guerra, medo e anarquia. Anteontem ele se gabou de que a população do Afeganistão foi "liberada"
-e isso depois de não ter conseguido capturar Bin Laden nem o
mulá Omar e enquanto suas tropas no país sofrem ataques diários. Devemos esquecer, quando
ouvimos falar da necessidade de
reenviar os inspetores de armas
ao Iraque, que a CIA já usou os
inspetores de armas da ONU para
espionar o Iraque.
E, é claro, precisamos esquecer
o petróleo. Na realidade, o petróleo é o único produto básico que
nunca é mencionado -e é uma
das poucas coisas sobre as quais
George Bush, filho, sabe alguma
coisa, ao lado de seus antigos colegas do setor petrolífero Cheney,
Rice e inúmeras outras figuras da
administração.
Nos 30 minutos de discurso sobre guerra anti-Iraque feito por
Bush anteontem -aliviado, agradavelmente, por apenas dois minutos de "espero que isto não exija uma ação militar"-, não foi
feita uma única referência ao fato
de que o Iraque pode possuir reservas petrolíferas maiores do que
as da Arábia Saudita, que as empresas petrolíferas americanas
podem lucrar bilhões de dólares
no caso de uma invasão americana e que, uma vez que tiver deixado o poder, Bush e seus amigos
poderão tornar-se multibilionários com o butim da guerra. Precisamos fingir que não sabemos de
nada disso antes de irmos à guerra. Precisamos esquecer.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Guerra sem limites: Ataque mata militar dos EUA no Kuait Próximo Texto: Países reagem com otimismo a discurso de Bush Índice
|