São Paulo, quarta-feira, 09 de outubro de 2002

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OPINIÃO

O que Bush quer que esqueçamos

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

Bush falou anteontem a uma platéia em Cincinnati sobre "guerreiros nucleares". Esqueçamos por um instante que ainda não podemos provar que Saddam Hussein possui armas nucleares. Esqueçamos que, nesse discurso, tudo o que Bush fez foi cozinhar e reapresentar todos os ""se", os "pode ser" e os "possivelmente" contidos nas alegações mal fundamentadas do historicamente desonesto dossiê de Tony Blair. Não. Temos de combater ""guerreiros nucleares". É isso o que precisamos fazer para justificar toda a farsa que nos está sendo imposta pela Casa Branca.
Esqueçamos os 15 palestinos, incluindo uma criança de 12 anos, mortos por Israel poucas horas antes de Bush fazer seu discurso; esqueçamos que, quando aviões de Israel mataram nove crianças palestinas em julho, ao lado de um militante, o premiê israelense, Ariel Sharon -"um homem de paz", segundo Bush-, descreveu o massacre como "um grande êxito". Esqueçamos, porque Israel está do nosso lado.
Lembre-se sempre de usar a palavra "terror". Use-a quando falar de Saddam Hussein, de Osama bin Laden, de Iasser Arafat ou de qualquer pessoa que se opõe a Israel ou aos EUA. Bush a usou em seu discurso, 30 vezes em meia hora. Uma vez por minuto.
Mas vejamos o que realmente devemos esquecer se quisermos apoiar toda essa loucura.
O mais importante é que precisamos esquecer que o presidente Reagan despachou um enviado para encontrar-se com Saddam em dezembro de 1983. É essencial esquecer isso por três motivos.
Em primeiro lugar, porque o terrível Saddam já estava usando gás contra os próprios iranianos na época, e essa é uma das razões pelas quais agora querem que façamos guerra contra ele.
Em segundo lugar, porque o enviado foi ao Iraque para organizar a reabertura da embaixada americana e obter relações melhores com o Açougueiro de Bagdá. Em terceiro lugar, porque o enviado era -surpresa!- Donald Rumsfeld. Talvez você ache estranho que Rumsfeld, durante as entrevistas coletivas em que se mostra tão disposto a bater papo, ainda não tenha conversado conosco sobre essa informação interessante. Seria de se esperar que ele pudesse querer esclarecer sobre a natureza malévola do criminoso com o qual trocou calorosos apertos de mão. Mas não.
Precisamos esquecer, também, que, em 1988, quando Saddam usou gás para destruir a população de Halabja, ao lado de dezenas de milhares de outros curdos -quando, nas palavras dos senhores Bush, Cheney, Blair, Straw etc., ele ""usou gás contra seu próprio povo"-, o presidente Bush, pai, lhe forneceu US$ 500 milhões em subsídios do governo americano para comprar produtos agrícolas dos EUA. Precisamos esquecer que, no ano seguinte, depois que o genocídio de Saddam se completou, o presidente Bush, pai, dobrou esse subsídio e o fez acompanhar por germes de antraz, helicópteros e os notórios materiais "de uso duplo", que podiam servir para fabricar armas químicas e biológicas.
E, quando Bush filho promete à população iraquiana "uma nova era de esperança" e democracia após a destruição de Saddam, como ele fez anteontem, devemos esquecer que os americanos prometeram ao Paquistão e ao Afeganistão uma nova era de esperança após a derrota soviética, em 1980 -e não fizeram nada.
Precisamos esquecer como o presidente Bush, pai, exortou os iraquianos a revoltar-se contra Saddam em 1991 -e, quando eles obedeceram, não fez nada. Devemos esquecer como a América prometeu à Somália uma nova era de esperança em 1993 e abandonou o país à míngua.
Precisamos esquecer como Bush filho prometeu "ficar ao lado" do Afeganistão antes de dar início aos bombardeios, no ano passado -e agora deixou o país num caos econômico feito de barões das drogas, senhores de guerra, medo e anarquia. Anteontem ele se gabou de que a população do Afeganistão foi "liberada" -e isso depois de não ter conseguido capturar Bin Laden nem o mulá Omar e enquanto suas tropas no país sofrem ataques diários. Devemos esquecer, quando ouvimos falar da necessidade de reenviar os inspetores de armas ao Iraque, que a CIA já usou os inspetores de armas da ONU para espionar o Iraque.
E, é claro, precisamos esquecer o petróleo. Na realidade, o petróleo é o único produto básico que nunca é mencionado -e é uma das poucas coisas sobre as quais George Bush, filho, sabe alguma coisa, ao lado de seus antigos colegas do setor petrolífero Cheney, Rice e inúmeras outras figuras da administração.
Nos 30 minutos de discurso sobre guerra anti-Iraque feito por Bush anteontem -aliviado, agradavelmente, por apenas dois minutos de "espero que isto não exija uma ação militar"-, não foi feita uma única referência ao fato de que o Iraque pode possuir reservas petrolíferas maiores do que as da Arábia Saudita, que as empresas petrolíferas americanas podem lucrar bilhões de dólares no caso de uma invasão americana e que, uma vez que tiver deixado o poder, Bush e seus amigos poderão tornar-se multibilionários com o butim da guerra. Precisamos fingir que não sabemos de nada disso antes de irmos à guerra. Precisamos esquecer.


Tradução de Clara Allain

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