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COMENTÁRIO
Conflito na Venezuela tem sabor de século passado
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
O locaute convocado pelo empresariado venezuelano contra o
presidente Hugo Chávez tem toda
a feição de um confronto velho de
pelo menos 30 anos, 40 talvez, na
história da América Latina.
A paralisação foi convocada por
causa de um conjunto de 49 leis
anunciadas dia 13 de novembro
pelo presidente, mas são duas delas que dão uma cor ideológica,
ainda que antiquada, à divergência.
A primeira é a Lei de Terras, que
permite ao governo tomar terras
privadas e redistribuí-las, quando
ultrapassem certo tamanho ou se
considere que são improdutivas.
Mais: os proprietários têm prazo
até o dia 18 para mostrar seus títulos de posse. Como se calcula que
95% deles não tenham os títulos,
o Estado pode acabar proprietário de quase toda a Venezuela
agrária.
Em outros países, poderia dar
margem a um processo revolucionário de distribuição de terras.
Não na Venezuela: apenas 8% da
população vive no campo, porcentagem insuficiente até para
ocupar produtivamente a terra
cultivável.
Posse da terra foi, até os anos 80,
uma das grandes batalhas ideológicas da América Latina.
A outra batalha é em torno do
papel do Estado. A Lei de Hidrocarbonetos, o segundo texto legal
atacado pelos empresários, reverte a já tênue desestatização operada no setor do petróleo, a grande
riqueza venezuelana.
O grito de protesto de Pedro
Carmona, o presidente da Fedecámaras, principal central empresarial venezuelana, também tem
sabor antigo: "[As leis" são inconstitucionais, não foram discutidas com a sociedade, são estatizantes, confiscatórias, intervencionistas, atentam contra a propriedade privada, o regime de liberdades e são antidemocráticas".
Para comparação: foi mais ou
menos ao som de protestos do gênero que se fizeram as marchas
contra as "reformas de base" defendidas, em 1963/64, pelo presidente brasileiro João Goulart, deposto no dia 31 de março de 1964.
Não é uma lembrança casual: a
mídia venezuelana também tem o
seu ponto de comparação. É com
o locaute de 21 de janeiro de 1958,
dois dias antes da queda do general Marcos Pérez Jiménez, o último (pelo menos até agora) ditador venezuelano.
É evidente a torcida para que o
locaute de amanhã tenha o mesmo efeito da paralisação de 58.
Mas quais as chances efetivas de
que isso ocorra?
Até recentemente, seriam nulas,
dado o enorme prestígio popular
de Chávez e a desintegração da
oposição e, de modo mais amplo,
das instituições.
Agora, o protesto empresarial
"dará lugar à primeira articulação
séria de um movimento de oposição cívica ao presidente Chávez e
a suas políticas", calcula a consultoria texana Strafor, especialista
em América Latina.
Mais: testará duas coisas. Numa
ponta, a força e a coesão da oposição à política "chavista" e, na outra, a profundidade da lealdade
militar a seu regime.
A dúvida sobre a lealdade militar é pertinente: primeiro, há o fato de que Francisco Árias Cárdenas, um dos companheiros de
Chávez na tentativa golpista fracassada de 1992, tornou-se seu adversário, inclusive na mais recente eleição presidencial.
Segundo, para assegurar a lealdade dos quartéis, o presidente teve de dar um aumento salarial de
20%, além de pagamentos adicionais, a 126 generais por meio de
verbas secretas da Presidência.
Mais complicado é comprar a
lealdade do público ao presidente.
Toda a ginástica retórica a que
Chávez se dedica foi insuficiente
para esconder o fato de que seus
três anos de governo foram incapazes de mudar o quadro de miséria da maioria dos venezuelanos. Foi a miséria que empurrou o
regime anterior à ruína e catapultou Chávez à Presidência.
Os números são impressionantes: dos quase 24 milhões de habitantes, 16 milhões (dois terços,
portanto) são pobres, dos quais
9,5 milhões vivem em pobreza
crítica.
São dados de 1998, o ano da vitória eleitoral de Chávez, mas que
pouco mudaram daí em diante.
Há, ainda, outro problema crucial que só fez piorar: a violência.
Em 1998, houve 4.550 homicídios
no país, número que quase duplicou no ano passado, quando bateu em 8.022 casos.
É natural, portanto, que as queixas contra o presidente venham,
cada vez mais, de setores que não
podem ser chamados de "a oligarquia", como Chávez se refere
sempre aos seus opositores do
empresariado.
É outro termo que caiu em desuso nos últimos anos na América
Latina, evidência adicional de que
o locaute da segunda-feira é um
conflito do século passado, embora seu resultado possa dar novas
feições ao futuro imediato da Venezuela.
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