São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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COMENTÁRIO

Conflito na Venezuela tem sabor de século passado

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O locaute convocado pelo empresariado venezuelano contra o presidente Hugo Chávez tem toda a feição de um confronto velho de pelo menos 30 anos, 40 talvez, na história da América Latina.
A paralisação foi convocada por causa de um conjunto de 49 leis anunciadas dia 13 de novembro pelo presidente, mas são duas delas que dão uma cor ideológica, ainda que antiquada, à divergência.
A primeira é a Lei de Terras, que permite ao governo tomar terras privadas e redistribuí-las, quando ultrapassem certo tamanho ou se considere que são improdutivas. Mais: os proprietários têm prazo até o dia 18 para mostrar seus títulos de posse. Como se calcula que 95% deles não tenham os títulos, o Estado pode acabar proprietário de quase toda a Venezuela agrária.
Em outros países, poderia dar margem a um processo revolucionário de distribuição de terras. Não na Venezuela: apenas 8% da população vive no campo, porcentagem insuficiente até para ocupar produtivamente a terra cultivável.
Posse da terra foi, até os anos 80, uma das grandes batalhas ideológicas da América Latina.
A outra batalha é em torno do papel do Estado. A Lei de Hidrocarbonetos, o segundo texto legal atacado pelos empresários, reverte a já tênue desestatização operada no setor do petróleo, a grande riqueza venezuelana.
O grito de protesto de Pedro Carmona, o presidente da Fedecámaras, principal central empresarial venezuelana, também tem sabor antigo: "[As leis" são inconstitucionais, não foram discutidas com a sociedade, são estatizantes, confiscatórias, intervencionistas, atentam contra a propriedade privada, o regime de liberdades e são antidemocráticas".
Para comparação: foi mais ou menos ao som de protestos do gênero que se fizeram as marchas contra as "reformas de base" defendidas, em 1963/64, pelo presidente brasileiro João Goulart, deposto no dia 31 de março de 1964.
Não é uma lembrança casual: a mídia venezuelana também tem o seu ponto de comparação. É com o locaute de 21 de janeiro de 1958, dois dias antes da queda do general Marcos Pérez Jiménez, o último (pelo menos até agora) ditador venezuelano.
É evidente a torcida para que o locaute de amanhã tenha o mesmo efeito da paralisação de 58. Mas quais as chances efetivas de que isso ocorra?
Até recentemente, seriam nulas, dado o enorme prestígio popular de Chávez e a desintegração da oposição e, de modo mais amplo, das instituições.
Agora, o protesto empresarial "dará lugar à primeira articulação séria de um movimento de oposição cívica ao presidente Chávez e a suas políticas", calcula a consultoria texana Strafor, especialista em América Latina.
Mais: testará duas coisas. Numa ponta, a força e a coesão da oposição à política "chavista" e, na outra, a profundidade da lealdade militar a seu regime.
A dúvida sobre a lealdade militar é pertinente: primeiro, há o fato de que Francisco Árias Cárdenas, um dos companheiros de Chávez na tentativa golpista fracassada de 1992, tornou-se seu adversário, inclusive na mais recente eleição presidencial.
Segundo, para assegurar a lealdade dos quartéis, o presidente teve de dar um aumento salarial de 20%, além de pagamentos adicionais, a 126 generais por meio de verbas secretas da Presidência.
Mais complicado é comprar a lealdade do público ao presidente. Toda a ginástica retórica a que Chávez se dedica foi insuficiente para esconder o fato de que seus três anos de governo foram incapazes de mudar o quadro de miséria da maioria dos venezuelanos. Foi a miséria que empurrou o regime anterior à ruína e catapultou Chávez à Presidência.
Os números são impressionantes: dos quase 24 milhões de habitantes, 16 milhões (dois terços, portanto) são pobres, dos quais 9,5 milhões vivem em pobreza crítica.
São dados de 1998, o ano da vitória eleitoral de Chávez, mas que pouco mudaram daí em diante.
Há, ainda, outro problema crucial que só fez piorar: a violência. Em 1998, houve 4.550 homicídios no país, número que quase duplicou no ano passado, quando bateu em 8.022 casos.
É natural, portanto, que as queixas contra o presidente venham, cada vez mais, de setores que não podem ser chamados de "a oligarquia", como Chávez se refere sempre aos seus opositores do empresariado.
É outro termo que caiu em desuso nos últimos anos na América Latina, evidência adicional de que o locaute da segunda-feira é um conflito do século passado, embora seu resultado possa dar novas feições ao futuro imediato da Venezuela.



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