São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2002

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ARTIGO

O escritor Salman Rushdie acredita que o fenômeno seja usado para ocultar má administração e problemas internos

Antiamericanismo vira pretexto político

france Presse - 7.fev.2002
Estudantes filipinos fazem protesto, numa universidade de Manila, contra presença militar americana no país.


SALMAN RUSHDIE

Disseram-nos que seria um conflito longo e feio, e é verdade.
A guerra dos Estados Unidos contra o terrorismo entrou em sua segunda fase, uma fase caracterizada pela tempestade quanto à situação e os direitos humanos dos prisioneiros detidos no Campo Raio X e pelo frustrante fracasso dos Estados Unidos em localizar Osama bin Laden e o mulá Omar.
Além disso, se os Estados Unidos começarem agora a atacar outros países suspeitos de abrigar terroristas, quase certamente o farão sozinhos.
A despeito dos seus sucessos militares, os norte-americanos se verão forçados a enfrentar um adversário ideológico mais amplo que talvez seja tão difícil de derrotar quanto o islamismo militante: o antiamericanismo, que, no momento, vem-se tornando cada vez mais evidente em todo o mundo.
A boa notícia é que esses dias pós-Taleban são um mau período para os fanáticos islâmicos. Vivos ou mortos, Osama bin Laden e o mulá Omar parecem ser homens do passado, guerreiros profanos que forçaram o martírio alheio enquanto corriam em busca de proteção nas montanhas.
Além disso, se os boatos persistentes merecem alguma credibilidade, a queda do eixo terrorista no Afeganistão pode bem ter impedido um golpe de Estado islâmico contra o presidente Pervez Musharraf, do Paquistão, liderado pelos elementos mais assemelhados ao Taleban nas Forças Armadas e nos serviços de inteligência paquistaneses. Gente como o aterrorizante general Hamid Gul.
E o presidente Musharraf mesmo, que está longe de ser um bom sujeito, foi pressionado a prender os líderes dos grupos terroristas da Caxemira que ele costumava encorajar.
Em todo o mundo, as lições da ação norte-americana no Afeganistão estão sendo aprendidas. A "jihad" deixou de ser uma idéia tão atraente quanto no final do ano passado.
Os países sob suspeita de fornecer assistência ao terrorismo subitamente começaram a se comportar bem, chegando até mesmo a prender alguns malfeitores notórios. O Irã aceitou a legitimidade do novo governo afegão.
Até mesmo o Reino Unido, um país que tem tolerado o fanatismo islâmico em grau superior ao da maioria de outras nações, começa a distinguir entre resistir à "islamofobia" e oferecer um refúgio para algumas das piores pessoas do mundo.
Os Estados Unidos fizeram o que era preciso fazer, no Afeganistão, e o fizeram bem. A má notícia, no entanto, é que esse sucesso não conquistou novos amigos para o país fora do Afeganistão.
De fato, a eficiência da campanha norte-americana pode ter feito com que algumas partes do mundo passassem a odiar os Estados Unidos ainda mais do que no passado.
Os críticos da campanha afegã no Ocidente estão enraivecidos porque lhes foi provado que estavam errados a cada passo do caminho: não, as forças militares norte-americanas não foram humilhadas como as russas; e sim, os ataques aéreos funcionaram bem; e não, a Aliança do Norte não massacrou ninguém em Cabul; e sim, o Taleban desmoronou como o grupo de tiranos odiados que eles eram, mesmo em seus bastiões tradicionais, no sul do país; e não, não foi difícil fazer com que os militantes abandonassem suas fortalezas nas cavernas; e sim, as diversas facções conseguiram organizar um novo governo de coalizão que parece desfrutar de amplo apoio entre os afegãos.
Enquanto isso, os elementos no mundo árabe e muçulmano que culpam os Estados Unidos por seus sentimentos de impotência política sentem-se agora mais impotentes do que nunca.
Como sempre, o radicalismo antiamericano se alimenta da raiva generalizada quanto à questão palestina, e continua a ser verdade que nada solaparia a propaganda dos fanáticos mais completamente do que um acordo de paz aceitável para o Oriente Médio.
No entanto, mesmo que esse acordo tivesse chegado, o antiamericanismo provavelmente não se reduziria.
Ele se tornou uma cortina de fumaça muito útil para ocultar os inúmeros defeitos dos países muçulmanos, sua corrupção e incompetência, a opressão de seus cidadãos, sua estagnação econômica, científica e cultural.
O ódio contra os Estados Unidos se tornou um símbolo de identificação, e torna possível uma retórica de palavras e atos eivados de gestos dramáticos e bandeiras queimadas, o que faz com que os homens se sintam bem.
O fenômeno contém fortes traços de hipocrisia, ao odiar mais o que mais deseja, e elementos de autodesprezo. ("Odiamos os Estados Unidos porque fizeram de si mesmos o que nós não somos capazes de fazer de nós mesmos".)
As coisas de que os norte-americanos são acusados -mente fechada, estereótipos, ignorância- são exatamente o que seus acusadores veriam caso se olhassem no espelho.
Hoje em dia, parece haver tantos desses acusadores fora do mundo islâmico quanto dentro dele.
Quem quer que tenha visitado o Reino Unido e a Europa, ou acompanhado as conversas públicas lá durante os últimos cinco meses, ficaria atônito, chocado mesmo, com a profundidade do sentimento antiamericano entre grandes segmentos da população.
O antiamericanismo ocidental é em geral algo de mais petulante do que sua contrapartida islâmica, e muito mais personalizado. Os países muçulmanos não gostam do poder dos Estados Unidos, de sua "arrogância", de seu sucesso; mas, no Ocidente não americano, as principais objeções parecem ser ao povo dos Estados Unidos.
Noite após noite me vi ouvindo as diatribes dos londrinos contra a esquisitice absoluta dos cidadãos norte-americanos.
Os ataques contra os Estados Unidos são tratados como coisa corriqueira. ("Os norte-americanos só se preocupam com seus próprios mortos".) O patriotismo, a obesidade, o emocionalismo, a auto-absorção dos norte-americanos é que são as questões cruciais.
Seria fácil aos norte-americanos, sob o atual clima de hostilidade, deixar de responder a críticas construtivas ou, pior, começar a agir como a esmagadora superpotência que são, tomando decisões e usando seu peso sem muita preocupação para com as objeções daquilo que eles já vêem como um mundo em larga medida hostil.
O tratamento dos detentos no Campo Raio X é um sinal preocupante. O desejo expresso pelo secretário de Estado americano, Colin Powell, de dar àquelas pessoas o status de prisioneiros de guerra e proteção sob as Convenções de Genebra foi uma resposta de estadista à pressão mundial, mas Powell aparentemente não conseguiu persuadir o presidente George W. Bush e Donald Rumsfeld (secretário da Defesa).
O governo Bush avançou muito desde o seu início, marcado pela quebra de tratados. Não deveria abandonar agora as tentativas de criar consensos.
Um grande poder e uma grande riqueza talvez jamais venham a ser populares, mas hoje mais do que nunca precisamos que os Estados Unidos exerçam seu poderio militar e econômico responsavelmente.
Não é hora de ignorar o resto do mundo e decidir agir por conta própria. Fazê-lo acarretaria o risco de perder aquilo que foi conquistado até agora.

Salman Rushdie, escritor anglo-indiano, é autor de, entre outras obras, "Os Versos Satânicos", "O Chão Que Ela Pisa" (ambos pela Companhia das Letras) e da coleção de ensaios "Step Across the Line" [cruze a linha", que será publicada em breve.


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