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Guerra pode criar bipolaridade Ocidente-islã
JAIME SPITZCOVSKY
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Antes dos ataques terroristas de
11 de setembro, debates sobre o
cenário político mundial se concentravam sobre os conceitos da
unipolaridade e da multipolaridade, usados para descrever quantos centros importantes de poder
haveria no tabuleiro da geopolítica. Washington trabalha hoje para construir um mundo bipolar,
no qual haja uma divisão que coloque, de um lado, uma coalizão
internacional antiterrorismo sob
liderança norte-americana e, de
outro, grupos terroristas e os regimes que os apóiam.
Existe, no entanto, o temor de
que essa bipolaridade possa opor
os Estados Unidos a um outro adversário: o mundo muçulmano. A
Casa Branca, ciente desse risco,
insiste em rotular a ofensiva contra o Afeganistão como uma "luta
contra o terror" e rejeita as descrições da crise atual como um "confronto entre o Ocidente e o islã".
A idéia de um "choque de civilizações" corresponde a um pesadelo para Washington e para a estabilidade mundial. O mundo islâmico compreende 1,3 bilhão de
pessoas (cerca de 20% da população mundial) em dezenas de países. Um deles, o Paquistão, já tem
capacidade nuclear.
O saudita Osama bin Laden, em
pronunciamento divulgado no
último domingo, deixou claro
que seu objetivo é tentar arrastar
o planeta para um "choque de civilizações". O terrorista conclamou os muçulmanos a promover
uma "guerra santa" que não permita aos EUA viver em paz até
"que a paz reine na Palestina e o
exército de infiéis deixe a terra de
Muhammad", numa referência à
permanência de tropas dos EUA
na Arábia Saudita.
Os principais desafios aos EUA,
portanto, podem ser divididos em
dois. O primeiro se limita às fronteiras do Afeganistão: derrubar o
Taleban e prender Bin Laden.
O segundo grande desafio para
a Casa Branca se encontra fora do
Afeganistão. Trata-se de costurar
a coalizão internacional que empreste apoio político, e às vezes
militar, à ofensiva antiterror. A fase inicial e mais fácil correspondeu a formalizar a adesão de tradicionais aliados, como Reino
Unido, Canadá e Alemanha.
A ofensiva diplomática norte-americana dirigiu também suas
baterias à Rússia e à China. Esses
eram os países que mais defendiam a tese de transformar o
mundo unipolar -modelado pela hegemonia política, econômica
e militar dos EUA- num mundo
multipolar onde ocupassem lugar
de destaque comparável a Washington.
Essa discussão, no entanto, ficou congelada. A agenda da geopolítica internacional foi sequestrada pelo debate de como tratar a
questão do terrorismo.
Num primeiro momento, Rússia e China hesitaram no apoio à
ofensiva dos EUA. Temiam que a
movimentação militar resultasse
numa ampliação da hegemonia
norte-americana.
Moscou, no entanto, chegou à
conclusão de que a ofensiva antiterror pode trazer mais benefícios
do que desvantagens. A Rússia
ocupa agora uma posição de destaque no cenário internacional,
devido à sua importância na Ásia
Central, palco do conflito e onde
ela cultiva influência há décadas.
Recuperar prestígio diplomático
é um sonho que o Kremlin acalenta desde a desaparição da
URSS, em 1991.
A Rússia teme a expansão do
fundamentalismo islâmico. Ela
enfrenta o separatismo dos muçulmanos na Tchetchênia, numa
guerra sangrenta que se arrasta
desde 1999. Sabe ainda dos riscos
de uma "talebanização" de países
vizinhos ao Afeganistão e que integravam a URSS, como Uzbequistão e Tadjiquistão.
A Rússia aproveita também a situação para cobrar de Washington um preço por seu apoio. Já
conseguiu que os países ocidentais deixassem de criticar abusos
cometidos por tropas russas na
Tchetchênia. O presidente Vladimir Putin espera que o namoro
com a Casa Branca resulte em
maiores laços econômicos.
Essa expectativa também norteia a China, onde o Partido Comunista mantém como sua prioridade máxima a manutenção do
crescimento econômico.
A China se aproveita da mudança do quadro internacional, que
obriga os EUA a deixarem de lado
a chamada "ameaça chinesa" para concentrar esforços na luta antiterror. Além de ver as vantagens
econômicas de uma relação mais
próxima com Washington, o governo chinês também não deixa
de se beneficiar da ofensiva contra
o fundamentalismo islâmico, já
que, no noroeste do país, atuam
separatistas muçulmanos.
O presidente Jiang Zemin, no
entanto, não pode mergulhar de
cabeça numa ofensiva liderada
pelos EUA, o que leva Pequim a
apoiar a ação contra o Taleban
"com ressalvas". A China não poderia promover, em curto espaço
de tempo, uma guinada diplomática tão acentuada como passar da
defesa apaixonada da multipolaridade à adesão incondicional a
iniciativas de Washington.
Também pesam nesse quadro
os meandros da política interna.
No próximo ano, o Partido Comunista realiza um congresso que
definirá as mudanças no comando do país. Jiang, de olho nas lutas
palacianas, não quer perder apoio
dos militares, núcleo principal de
resistência aos EUA.
Washington já encontrou formas de conviver atualmente com
dois personagens de outros cenários de bipolaridade. O Kremlin e
a Casa Branca travaram a Guerra
Fria, que opunha capitalismo a
comunismo e que terminou no final dos anos 80. Washington e Pequim despontavam como a possível bipolaridade no século 21.
Em seus esforços para criar uma
nova bipolaridade, o presidente
George W. Bush recorre a frases
de efeito como "ou se está com os
EUA ou com os terroristas". O risco maior dessa estratégia é, por
conta dos prováveis efeitos colaterais da ação militar, que haja uma
divisão entre Ocidente e islã.
Exatamente para afastar esse
fantasma, os EUA definiram como prioridade na montagem da
coalizão antiterror a participação
do maior número possível de países árabes e muçulmanos. Ao trazer Paquistão, Egito e Arábia Saudita para o bloco, Bush acredita
eliminar o risco de criar a bipolaridade Ocidente versus islã.
Dependentes de laços econômicos e políticos com Washington,
os regimes egípcio e saudita se dobraram à pressão. O Paquistão
também o fez, mas em troca de
ajuda econômica e de garantias de
que terá influência no Afeganistão pós-Taleban, já que o grupo
chegou ao poder graças à ajuda
dos vizinhos paquistaneses.
A opção desses países muçulmanos não é indolor. São regimes
autoritários, onde a falta de democracia não reflete, no plano
político, os sentimentos anti-EUA
e fundamentalistas da população.
Os EUA, portanto, caminham
sobre uma linha tênue. De um lado, precisam levar adiante uma
ofensiva armada contra o terrorismo. De outro, não podem se
dar ao luxo de cometer deslizes,
como a morte de civis no Afeganistão, que coloquem em risco a
manutenção da coalizão e a estabilidade de países muçulmanos.
Um fracasso dessa estratégia poderia levar ao pesadelo de uma
nova bipolaridade para o século
21: Ocidente versus islã.
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