São Paulo, quarta-feira, 10 de outubro de 2001

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Guerra pode criar bipolaridade Ocidente-islã

JAIME SPITZCOVSKY
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Antes dos ataques terroristas de 11 de setembro, debates sobre o cenário político mundial se concentravam sobre os conceitos da unipolaridade e da multipolaridade, usados para descrever quantos centros importantes de poder haveria no tabuleiro da geopolítica. Washington trabalha hoje para construir um mundo bipolar, no qual haja uma divisão que coloque, de um lado, uma coalizão internacional antiterrorismo sob liderança norte-americana e, de outro, grupos terroristas e os regimes que os apóiam.
Existe, no entanto, o temor de que essa bipolaridade possa opor os Estados Unidos a um outro adversário: o mundo muçulmano. A Casa Branca, ciente desse risco, insiste em rotular a ofensiva contra o Afeganistão como uma "luta contra o terror" e rejeita as descrições da crise atual como um "confronto entre o Ocidente e o islã".
A idéia de um "choque de civilizações" corresponde a um pesadelo para Washington e para a estabilidade mundial. O mundo islâmico compreende 1,3 bilhão de pessoas (cerca de 20% da população mundial) em dezenas de países. Um deles, o Paquistão, já tem capacidade nuclear.
O saudita Osama bin Laden, em pronunciamento divulgado no último domingo, deixou claro que seu objetivo é tentar arrastar o planeta para um "choque de civilizações". O terrorista conclamou os muçulmanos a promover uma "guerra santa" que não permita aos EUA viver em paz até "que a paz reine na Palestina e o exército de infiéis deixe a terra de Muhammad", numa referência à permanência de tropas dos EUA na Arábia Saudita.
Os principais desafios aos EUA, portanto, podem ser divididos em dois. O primeiro se limita às fronteiras do Afeganistão: derrubar o Taleban e prender Bin Laden.
O segundo grande desafio para a Casa Branca se encontra fora do Afeganistão. Trata-se de costurar a coalizão internacional que empreste apoio político, e às vezes militar, à ofensiva antiterror. A fase inicial e mais fácil correspondeu a formalizar a adesão de tradicionais aliados, como Reino Unido, Canadá e Alemanha.
A ofensiva diplomática norte-americana dirigiu também suas baterias à Rússia e à China. Esses eram os países que mais defendiam a tese de transformar o mundo unipolar -modelado pela hegemonia política, econômica e militar dos EUA- num mundo multipolar onde ocupassem lugar de destaque comparável a Washington.
Essa discussão, no entanto, ficou congelada. A agenda da geopolítica internacional foi sequestrada pelo debate de como tratar a questão do terrorismo.
Num primeiro momento, Rússia e China hesitaram no apoio à ofensiva dos EUA. Temiam que a movimentação militar resultasse numa ampliação da hegemonia norte-americana.
Moscou, no entanto, chegou à conclusão de que a ofensiva antiterror pode trazer mais benefícios do que desvantagens. A Rússia ocupa agora uma posição de destaque no cenário internacional, devido à sua importância na Ásia Central, palco do conflito e onde ela cultiva influência há décadas. Recuperar prestígio diplomático é um sonho que o Kremlin acalenta desde a desaparição da URSS, em 1991.
A Rússia teme a expansão do fundamentalismo islâmico. Ela enfrenta o separatismo dos muçulmanos na Tchetchênia, numa guerra sangrenta que se arrasta desde 1999. Sabe ainda dos riscos de uma "talebanização" de países vizinhos ao Afeganistão e que integravam a URSS, como Uzbequistão e Tadjiquistão.
A Rússia aproveita também a situação para cobrar de Washington um preço por seu apoio. Já conseguiu que os países ocidentais deixassem de criticar abusos cometidos por tropas russas na Tchetchênia. O presidente Vladimir Putin espera que o namoro com a Casa Branca resulte em maiores laços econômicos.
Essa expectativa também norteia a China, onde o Partido Comunista mantém como sua prioridade máxima a manutenção do crescimento econômico.
A China se aproveita da mudança do quadro internacional, que obriga os EUA a deixarem de lado a chamada "ameaça chinesa" para concentrar esforços na luta antiterror. Além de ver as vantagens econômicas de uma relação mais próxima com Washington, o governo chinês também não deixa de se beneficiar da ofensiva contra o fundamentalismo islâmico, já que, no noroeste do país, atuam separatistas muçulmanos.
O presidente Jiang Zemin, no entanto, não pode mergulhar de cabeça numa ofensiva liderada pelos EUA, o que leva Pequim a apoiar a ação contra o Taleban "com ressalvas". A China não poderia promover, em curto espaço de tempo, uma guinada diplomática tão acentuada como passar da defesa apaixonada da multipolaridade à adesão incondicional a iniciativas de Washington.
Também pesam nesse quadro os meandros da política interna. No próximo ano, o Partido Comunista realiza um congresso que definirá as mudanças no comando do país. Jiang, de olho nas lutas palacianas, não quer perder apoio dos militares, núcleo principal de resistência aos EUA.
Washington já encontrou formas de conviver atualmente com dois personagens de outros cenários de bipolaridade. O Kremlin e a Casa Branca travaram a Guerra Fria, que opunha capitalismo a comunismo e que terminou no final dos anos 80. Washington e Pequim despontavam como a possível bipolaridade no século 21.
Em seus esforços para criar uma nova bipolaridade, o presidente George W. Bush recorre a frases de efeito como "ou se está com os EUA ou com os terroristas". O risco maior dessa estratégia é, por conta dos prováveis efeitos colaterais da ação militar, que haja uma divisão entre Ocidente e islã.
Exatamente para afastar esse fantasma, os EUA definiram como prioridade na montagem da coalizão antiterror a participação do maior número possível de países árabes e muçulmanos. Ao trazer Paquistão, Egito e Arábia Saudita para o bloco, Bush acredita eliminar o risco de criar a bipolaridade Ocidente versus islã.
Dependentes de laços econômicos e políticos com Washington, os regimes egípcio e saudita se dobraram à pressão. O Paquistão também o fez, mas em troca de ajuda econômica e de garantias de que terá influência no Afeganistão pós-Taleban, já que o grupo chegou ao poder graças à ajuda dos vizinhos paquistaneses.
A opção desses países muçulmanos não é indolor. São regimes autoritários, onde a falta de democracia não reflete, no plano político, os sentimentos anti-EUA e fundamentalistas da população.
Os EUA, portanto, caminham sobre uma linha tênue. De um lado, precisam levar adiante uma ofensiva armada contra o terrorismo. De outro, não podem se dar ao luxo de cometer deslizes, como a morte de civis no Afeganistão, que coloquem em risco a manutenção da coalizão e a estabilidade de países muçulmanos. Um fracasso dessa estratégia poderia levar ao pesadelo de uma nova bipolaridade para o século 21: Ocidente versus islã.



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