São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

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ANÁLISE

"Pax Americana" na Ásia é ameaçada

PHILIPPE PONS
DO "LE MONDE"

Ao renegar o tratado de não-poliferação nuclear, a Coréia do Norte agravou uma crise que põe em xeque todo o sistema de alianças sobre o qual se baseia, há mais de meio século, a chamada "Pax Americana" na Ásia e que se traduz por um vaivém de emissários americanos, asiáticos e russos nas capitais da região.
Apesar de uma unidade de fachada, americanos e sul-coreanos têm visões divergentes, não sobre a condenação do programa nuclear norte-coreano, mas quanto à maneira de fazer Pyongyang enxergar a razão.
Mais ainda do que a Coréia do Norte, é a Coréia do Sul, onde estão 37 mil soldados americanos, que preocupa George W. Bush, afirmou recentemente o "New York Times". Isso porque Seul foge de seu papel de vassalo dos EUA, dissociando-se da política de estrangulamento econômico da Coréia do Norte conduzida por Washington. ""O isolamento de um país comunista nunca foi eficaz (...), e não queremos voltar à Guerra Fria", declarou o presidente sul-coreano, Kim Dae-jung.
A intransigência da administração Bush, atolada em seu discurso sobre o "eixo do mal", fez com que uma questão menor -um programa experimental norte-coreano problemático de enriquecimento de urânio- degenerasse numa escalada de tensão que, hoje, conduz a um impasse: a política da força, quando não é apoiada por uma ação diplomática, conduz unicamente a soluções guerreiras. Acontece que, no que diz respeito à península coreana, a diplomacia americana parece carecer de apreciação do terreno e resumir-se à "aversão visceral" de Bush pelo dirigente norte-coreano, Kim Jong-il.
Nos últimos dois anos, obcecada pela tarefa messiânica de "torcer o pescoço" do mal, a Casa Branca parece não saber com quem está lidando. Hoje ela descobre um adversário hábil, mas também uma jovem democracia sul-coreana, com mais confiança em si. Ao insistir no caminho do confronto com a Coréia do Norte, Bush corre o risco de envenenar suas relações com Seul.

"Guerra preventiva"
Ninguém na região nutre ilusões quanto ao regime de Pyongyang, e agir como o grande vilão da história é uma imagem feita sob medida para ele. Não obstante, por razões geopolíticas (especialmente o desejo da China de manter um Estado-tampão entre ela e a Coréia do Sul), assim como por outros motivos que dizem respeito à natureza do regime, o poder de Kim Jong-il não parece estar a ponto de entrar em colapso. É preciso, portanto, jogar outra carta e oferecer a ele alguma coisa em troca da ameaça que ele brande. Pyongyang não quer a arma nuclear por ela mesma -quer negociá-la. É ameaçador por seu arsenal militar, é verdade, mas mais ainda porque se sente ameaçado -e não é sem razão.
Após o acordo de 1994 com Washington e o início de reconciliação com a Coréia do Sul, a Coréia do Norte parecia ter empreendido um caminho de um certo apaziguamento. Desde que chegou ao poder, Bush rompeu esse equilíbrio, exigindo que fossem incluídas as armas convencionais nas negociações sobre mísseis -proposta que, previsivelmente, a Coréia do Norte recusou. Em seguida, Bush rejeitou a política de reconciliação do Sul com o Norte, que incluiu em seu "eixo do mal". Com a doutrina de "guerra preventiva" contra os Estados que supostamente apóiam o terrorismo, a Coréia do Norte tornou-se um alvo potencial. O regime se enrijeceu e, ao que parece, retomou seu programa experimental de enriquecimento de urânio para poder ter uma carta com a qual negociar.
Como Pyongyang "violou" o acordo de congelamento de seu programa nuclear de 1994, os EUA e seus aliados passaram a suspender as entregas de petróleo prometidas nesse acordo. Pyongyang reagiu recolocando em ação sua central nuclear, paralisada em 1994. Que o regime de Pyongyang negocie geralmente de má-fé não é novidade, nem tampouco que recorra à chantagem. A Coréia do Norte está em situação desesperadora e não possui outras cartas a jogar. Mas, diante de uma Coréia do Norte contra a qual o recurso à força está excluído, resta apenas a possibilidade da negociação.
A intransigência americana na questão coreana ilustra os limites de um unilateralismo repudiado até mesmo pelos mais fiéis aliados de Washington e que conduz ao impasse atual. Para sair dele será preciso retomar o esforço regional conjunto e, no que diz respeito ao presidente Bush, cuidar bem dele, para não correr o risco de fazer rachar todo o sistema de aliança americana na Ásia.


Tradução de Clara Allain


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