São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GEOPOLÍTICA

Ben Bella, líder da independência e primeiro presidente do país, diz que projetos duradouros não existem mais

Herói argelino lamenta carência de líderes mundiais

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A idéia de competição internacional soa muito bem, contudo é desprovida de sentido e extremamente injusta, pois os ricos estabelecem as regras da globalização em detrimento dos pobres.
A afirmação é de Ahmed Ben Bella, líder independentista argelino e primeiro presidente do país. Atualmente, ele preside uma organização não-governamental que busca fazer uma ponte entre os países ricos e os mais pobres para reduzir as disparidades do sistema mundial. Ela se chama Norte-Sul, é localizada em Genebra, na Suíça, e trabalha em inúmeros países menos abastados.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por Ben Bella à Folha, em São Paulo.

Folha - O sr. foi condecorado pela França por serviços prestados na Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, o sr. foi preso pelo governo francês. Isso foi uma decepção?
Ahmed Ben Bella -
Fui condecorado duas vezes pela França. A primeira vez foi em 1939, quando defendi o território francês. Mais tarde, fui convocado para combater na Itália e condecorado de novo. A França me deu sua mais alta condecoração, a medalha por serviços de guerra excepcionais. Foi o general Charles de Gaulle que me entregou essa medalha.
Devo dizer, portanto, que fiquei um pouco decepcionado. Mas o que fiz durante a guerra também tinha um lado pessoal, pois o fascismo e o nazismo atacavam os semitas. Como os judeus, os árabes são semitas. Assim, meu combate tinha um ideal.
Na campanha na Itália, o Exército francês era composto majoritariamente por árabes: argelinos, marroquinos e tunisianos. Logicamente, éramos comandados por franceses. Partimos de Nápoles e subimos até Florença, libertando todas as cidades pelas quais passamos. Muitas vezes, tivemos de subir até 2.000 metros de altitude, e o frio era insuportável.
É lógico que me decepcionei com a França mais tarde, porém não se tratava de uma decepção nova. Muito jovem, eu já fazia parte de um partido que buscava a independência da Argélia, o que significa que eu já conhecia muito bem a França. Trata-se de uma nação que teve grandes gênios, mas que foi um dos mais violentos colonizadores modernos.
A diferença entre a Argélia e as outras colônias francesas do norte da África, como o Marrocos e a Tunísia, é que ela não era um protetorado, mas um Departamento de Ultramar. Mesmo assim, éramos considerados como um "povo colonizado". Meu combate contra a França também tinha, portanto, um ideal. Era uma luta contra a colonização. No colegial, eu já militava no Partido do Povo Argelino contra o jugo francês.

Folha - Foi para intensificar esse combate que o sr. fundou a Frente de Libertação Nacional mais tarde?
Ben Bella -
É verdade, mas isso foi depois. Assim, desde o início da década de 30, eu já militava pela independência. Em seguida, começou a pior fase da repressão, com muitas pessoas sendo presas e condenadas a penas infundadas.
No dia da vitória dos aliados, em 8 de maio de 1945, os argelinos fizeram um protesto pacífico, e cerca de 45 mil pessoas foram massacradas pelas forças francesas. Essa carnificina resolveu um problema, já que ficou claro em minha cabeça e dentro do partido que não estávamos lutando por nossa liberdade de modo correto.
Afinal, queríamos uma independência pacífica, pelo voto popular. Percebemos, então, que isso era impossível e decidimos lutar com armas, pois não podíamos mais confiar nos franceses. Constituímos, então, um exército secreto dentro do partido. Foi todo o processo que nos conduziu a realizar ações violentas.
A população argelina tem uma tradição de resistência, que existe desde as invasões dos romanos. Trata-se de um povo obstinado, que, quando percebe uma injustiça, sabe organizar uma guerrilha.

Folha - Como foi a guerra pela libertação da Argélia?
Ben Bella -
Foi uma situação histórica particular. A guerra fez parte de um processo iniciado por outros conflitos. A guerra pela liberdade da Indochina (Vietnã, Laos e Camboja) do domínio francês (1946-1954), a Guerra da Coréia (1950-1953), a Revolução Cubana (1959). Foi um momento em que o colonialismo, como conceito histórico, já não tinha mais sentido. Houve, então, uma grande onda de libertação.
A Argélia se libertou e ajudou vários países a alcançar a liberdade. Treinei pessoalmente o angolano Agostinho Neto e consegui lhe fornecer armas para lutar contra a opressão portuguesa. Joaquim Chissano, que é presidente de Moçambique hoje, também fez seu treinamento na Argélia. Antes, Samora Machel (líder da independência moçambicana) também passou por nossos campos.
Até mesmo (Ernesto) Che Guevara ficou seis meses na Argélia para treinar latino-americanos, pois, em Cuba, isso era impossível. Os EUA vigiavam as ações dos cubanos da base de Guantánamo.
A luta contra a França foi uma guerra e, como a maioria das guerras, foi terrível. Apesar disso, tínhamos um ideal: criar um sistema mundial mais justo.

Folha - O sr. crê que as guerras ou guerrilhas de hoje sejam diferentes das da época?
Ben Bella -
Hoje as guerras são de alta tecnologia, e as guerrilhas não passam de atentados, não têm mais objetivos nobres. Uma guerra pela libertação de um país é sagrada. Hoje as guerrilhas são feitas em pequenas unidades de ataque, e, na Argélia, o conflito opõe pessoas do mesmo povo, que possuem o mesmo passado.
Diante do fracasso das teorias de desenvolvimento dos países menos abastados, as pessoas acabam se confrontando para poder usufruir das migalhas que os países ricos lhe concedem.

Folha - O sr. desempenhou um papel crucial no Terceiro Mundo e participou do Fórum Social Internacional, em Porto Alegre. Como o sr. analisa as relações entre os países ricos e os Estados pobres hoje?
Ben Bella -
Atualmente, somos livres do jugo colonial, porém vivemos dentro de um sistema mundial que foi concebido pelos países ricos. Logo após os acordos de Evian (que puseram fim à guerra pela libertação da Argélia, em 1962), já sabíamos que a cena internacional era injusta.
Temos uma bandeira e um hino, contudo o resto vem dos Estados mais abastados. A ordem econômica foi desenhada por eles para favorecê-los. Eles querem apoderar-se das riquezas dos países menos abastados por um preço baixo. Muitos produtos que lhes vendemos têm seu preço fixado pelo "mercado internacional", no qual trabalham pessoas criadas e educadas em países desenvolvidos. Os produtos que eles nos vendem também têm seu preço fixado por eles. É uma situação difícil para os menos abastados.
Hoje, no sistema mundial, há algo de pobre. A idéia de competição soa muito bem, mas é totalmente injusta e sem sentido.
É vergonhoso que, em 2001, 35 milhões de pessoas morram de fome por ano, enquanto países ricos destroem suas reservas de alimentos para não permitir que seu preço de mercado caia.
No que concerne às doenças tropicais, o quadro é o mesmo. Cerca de 1,6 bilhão de pessoas sofrem dessas doenças no mundo. Isso porque não há pesquisas científicas suficientes. A razão é simples: essas enfermidades não atingem os países desenvolvidos.
É muito mais rentável para a indústria farmacêutica internacional tentar descobrir a cura de doenças que atingem os ricos, como as cardiovasculares ou o câncer, pois ela poderá vender seus produtos a preços elevados.
Há também a dívida dos países pobres, que só faz crescer. Afinal, os serviços da dívida são tão elevados que entramos num círculo vicioso. Fala-se em perdão de dívidas, mas não verdadeiramente. Só alguns países paupérrimos terão suas dívidas perdoadas.
O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial emprestam dinheiro aos países pobres apenas para poder perpetuar esse sistema viciado. Não há solução, pois não há diálogo.

Folha - E quanto ao conflito argelino atual, há solução?
Ben Bella -
O conflito de hoje é ligado a tudo que acabo de falar. Ele existe porque não há desenvolvimento, apesar de a Argélia ser um país rico. Há um desemprego terrível e uma pobreza vergonhosa, pois as classes dominantes se aproveitam do pouco que lhes é dado pelo sistema.
É o clássico "sistema-mundo", descrito por Imanuel Wallerstein (teoria segundo a qual as elites mundiais perpetuam o sistema desigual favorecendo elites periféricas, que garantem a continuidade do sistema em países menos desenvolvidos). Há dinheiro, porém ele não é dividido de modo justo. Mas o sistema é tão nefasto que os problemas estão chegando aos países ricos. Os níveis de desemprego altíssimos que assolam países europeus são apenas um exemplo entre muitos. A droga e o suicídio são outros exemplos.
Se as 400 pessoas mais ricas do mundo doassem uma ínfima parte de suas fortunas aos menos abastados, os problemas seriam sensivelmente reduzidos. Não creio num sistema em que haja uma única criança faminta.
Na Argélia, as entidades muçulmanas fazem um trabalho de apoio aos mais pobres extraordinário há tempos. Com isso, passaram a ganhar a simpatia dessas pessoas, e, quando a eleição de 1992 foi cancelada pelo governo porque uma formação política islâmica era favorita, o barril de pólvora explodiu.

Folha - O que o sr. pensa dos líderes políticos atuais?
Ben Bella -
Conheci todos os grandes de minha época. Nos EUA, desde (John F.) Kennedy, que morreu em 1963, não há grandes políticos. Gosto de Jacques Chirac (presidente francês), pois ele tem simpatia pelos árabes.
Não quero ser maldoso nem falar mal dos políticos, mas os grandes líderes, aqueles que pensam a longo prazo e têm grandes projetos, não existem mais.


Texto Anterior: Oriente Médio: Intifada traz anarquia a território palestino
Próximo Texto: Saiba quem é o ex-presidente Ahmed Ben Bella
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.