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GEOPOLÍTICA
Ben Bella, líder da independência e primeiro presidente do país, diz que projetos duradouros não existem mais
Herói argelino lamenta carência de líderes mundiais
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A idéia de competição internacional soa muito bem, contudo é
desprovida de sentido e extremamente injusta, pois os ricos estabelecem as regras da globalização
em detrimento dos pobres.
A afirmação é de Ahmed Ben
Bella, líder independentista argelino e primeiro presidente do país.
Atualmente, ele preside uma organização não-governamental
que busca fazer uma ponte entre
os países ricos e os mais pobres
para reduzir as disparidades do
sistema mundial. Ela se chama
Norte-Sul, é localizada em Genebra, na Suíça, e trabalha em inúmeros países menos abastados.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por
Ben Bella à Folha, em São Paulo.
Folha - O sr. foi condecorado pela
França por serviços prestados na
Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, o sr. foi preso pelo governo
francês. Isso foi uma decepção?
Ahmed Ben Bella - Fui condecorado duas vezes pela França. A
primeira vez foi em 1939, quando
defendi o território francês. Mais
tarde, fui convocado para combater na Itália e condecorado de novo. A França me deu sua mais alta
condecoração, a medalha por serviços de guerra excepcionais. Foi
o general Charles de Gaulle que
me entregou essa medalha.
Devo dizer, portanto, que fiquei
um pouco decepcionado. Mas o
que fiz durante a guerra também
tinha um lado pessoal, pois o fascismo e o nazismo atacavam os
semitas. Como os judeus, os árabes são semitas. Assim, meu combate tinha um ideal.
Na campanha na Itália, o Exército francês era composto majoritariamente por árabes: argelinos,
marroquinos e tunisianos. Logicamente, éramos comandados
por franceses. Partimos de Nápoles e subimos até Florença, libertando todas as cidades pelas quais
passamos. Muitas vezes, tivemos
de subir até 2.000 metros de altitude, e o frio era insuportável.
É lógico que me decepcionei
com a França mais tarde, porém
não se tratava de uma decepção
nova. Muito jovem, eu já fazia
parte de um partido que buscava
a independência da Argélia, o que
significa que eu já conhecia muito
bem a França. Trata-se de uma
nação que teve grandes gênios,
mas que foi um dos mais violentos colonizadores modernos.
A diferença entre a Argélia e as
outras colônias francesas do norte
da África, como o Marrocos e a
Tunísia, é que ela não era um protetorado, mas um Departamento
de Ultramar. Mesmo assim, éramos considerados como um "povo colonizado". Meu combate
contra a França também tinha,
portanto, um ideal. Era uma luta
contra a colonização. No colegial,
eu já militava no Partido do Povo
Argelino contra o jugo francês.
Folha - Foi para intensificar esse
combate que o sr. fundou a Frente
de Libertação Nacional mais tarde?
Ben Bella - É verdade, mas isso
foi depois. Assim, desde o início
da década de 30, eu já militava pela independência. Em seguida, começou a pior fase da repressão,
com muitas pessoas sendo presas
e condenadas a penas infundadas.
No dia da vitória dos aliados,
em 8 de maio de 1945, os argelinos
fizeram um protesto pacífico, e
cerca de 45 mil pessoas foram
massacradas pelas forças francesas. Essa carnificina resolveu um
problema, já que ficou claro em
minha cabeça e dentro do partido
que não estávamos lutando por
nossa liberdade de modo correto.
Afinal, queríamos uma independência pacífica, pelo voto popular. Percebemos, então, que isso era impossível e decidimos lutar com armas, pois não podíamos mais confiar nos franceses.
Constituímos, então, um exército
secreto dentro do partido. Foi todo o processo que nos conduziu a
realizar ações violentas.
A população argelina tem uma
tradição de resistência, que existe
desde as invasões dos romanos.
Trata-se de um povo obstinado,
que, quando percebe uma injustiça, sabe organizar uma guerrilha.
Folha - Como foi a guerra pela libertação da Argélia?
Ben Bella - Foi uma situação histórica particular. A guerra fez parte de um processo iniciado por
outros conflitos. A guerra pela liberdade da Indochina (Vietnã,
Laos e Camboja) do domínio
francês (1946-1954), a Guerra da
Coréia (1950-1953), a Revolução
Cubana (1959). Foi um momento
em que o colonialismo, como
conceito histórico, já não tinha
mais sentido. Houve, então, uma
grande onda de libertação.
A Argélia se libertou e ajudou
vários países a alcançar a liberdade. Treinei pessoalmente o angolano Agostinho Neto e consegui
lhe fornecer armas para lutar contra a opressão portuguesa. Joaquim Chissano, que é presidente
de Moçambique hoje, também fez
seu treinamento na Argélia. Antes, Samora Machel (líder da independência moçambicana) também passou por nossos campos.
Até mesmo (Ernesto) Che Guevara ficou seis meses na Argélia
para treinar latino-americanos,
pois, em Cuba, isso era impossível. Os EUA vigiavam as ações dos
cubanos da base de Guantánamo.
A luta contra a França foi uma
guerra e, como a maioria das
guerras, foi terrível. Apesar disso,
tínhamos um ideal: criar um sistema mundial mais justo.
Folha - O sr. crê que as guerras ou
guerrilhas de hoje sejam diferentes das da época?
Ben Bella - Hoje as guerras são
de alta tecnologia, e as guerrilhas
não passam de atentados, não
têm mais objetivos nobres. Uma
guerra pela libertação de um país
é sagrada. Hoje as guerrilhas são
feitas em pequenas unidades de
ataque, e, na Argélia, o conflito
opõe pessoas do mesmo povo,
que possuem o mesmo passado.
Diante do fracasso das teorias
de desenvolvimento dos países
menos abastados, as pessoas acabam se confrontando para poder
usufruir das migalhas que os países ricos lhe concedem.
Folha - O sr. desempenhou um
papel crucial no Terceiro Mundo e
participou do Fórum Social Internacional, em Porto Alegre. Como o
sr. analisa as relações entre os países ricos e os Estados pobres hoje?
Ben Bella - Atualmente, somos
livres do jugo colonial, porém vivemos dentro de um sistema
mundial que foi concebido pelos
países ricos. Logo após os acordos
de Evian (que puseram fim à
guerra pela libertação da Argélia,
em 1962), já sabíamos que a cena
internacional era injusta.
Temos uma bandeira e um hino, contudo o resto vem dos Estados mais abastados. A ordem econômica foi desenhada por eles para favorecê-los. Eles querem apoderar-se das riquezas dos países
menos abastados por um preço
baixo. Muitos produtos que lhes
vendemos têm seu preço fixado
pelo "mercado internacional", no
qual trabalham pessoas criadas e
educadas em países desenvolvidos. Os produtos que eles nos
vendem também têm seu preço
fixado por eles. É uma situação difícil para os menos abastados.
Hoje, no sistema mundial, há algo de pobre. A idéia de competição soa muito bem, mas é totalmente injusta e sem sentido.
É vergonhoso que, em 2001, 35
milhões de pessoas morram de
fome por ano, enquanto países ricos destroem suas reservas de alimentos para não permitir que seu
preço de mercado caia.
No que concerne às doenças
tropicais, o quadro é o mesmo.
Cerca de 1,6 bilhão de pessoas sofrem dessas doenças no mundo.
Isso porque não há pesquisas
científicas suficientes. A razão é
simples: essas enfermidades não
atingem os países desenvolvidos.
É muito mais rentável para a indústria farmacêutica internacional tentar descobrir a cura de
doenças que atingem os ricos, como as cardiovasculares ou o câncer, pois ela poderá vender seus
produtos a preços elevados.
Há também a dívida dos países
pobres, que só faz crescer. Afinal,
os serviços da dívida são tão elevados que entramos num círculo
vicioso. Fala-se em perdão de dívidas, mas não verdadeiramente.
Só alguns países paupérrimos terão suas dívidas perdoadas.
O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial emprestam dinheiro aos países pobres
apenas para poder perpetuar esse
sistema viciado. Não há solução,
pois não há diálogo.
Folha - E quanto ao conflito argelino atual, há solução?
Ben Bella - O conflito de hoje é ligado a tudo que acabo de falar. Ele
existe porque não há desenvolvimento, apesar de a Argélia ser um
país rico. Há um desemprego terrível e uma pobreza vergonhosa,
pois as classes dominantes se
aproveitam do pouco que lhes é
dado pelo sistema.
É o clássico "sistema-mundo",
descrito por Imanuel Wallerstein
(teoria segundo a qual as elites
mundiais perpetuam o sistema
desigual favorecendo elites periféricas, que garantem a continuidade do sistema em países menos
desenvolvidos). Há dinheiro, porém ele não é dividido de modo
justo. Mas o sistema é tão nefasto
que os problemas estão chegando
aos países ricos. Os níveis de desemprego altíssimos que assolam
países europeus são apenas um
exemplo entre muitos. A droga e
o suicídio são outros exemplos.
Se as 400 pessoas mais ricas do
mundo doassem uma ínfima parte de suas fortunas aos menos
abastados, os problemas seriam
sensivelmente reduzidos. Não
creio num sistema em que haja
uma única criança faminta.
Na Argélia, as entidades muçulmanas fazem um trabalho de
apoio aos mais pobres extraordinário há tempos. Com isso, passaram a ganhar a simpatia dessas
pessoas, e, quando a eleição de
1992 foi cancelada pelo governo
porque uma formação política islâmica era favorita, o barril de
pólvora explodiu.
Folha - O que o sr. pensa dos líderes políticos atuais?
Ben Bella - Conheci todos os
grandes de minha época. Nos
EUA, desde (John F.) Kennedy,
que morreu em 1963, não há grandes políticos. Gosto de Jacques
Chirac (presidente francês), pois
ele tem simpatia pelos árabes.
Não quero ser maldoso nem falar mal dos políticos, mas os grandes líderes, aqueles que pensam a
longo prazo e têm grandes projetos, não existem mais.
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