São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

E-mails e depoimentos retratam relações pessoais entre três envolvidos no escândalo da prisão perto de Bagdá

Abu Ghraib é trama sombria de traições

KATE ZERNKE
DO "NEW YORK TIMES"

Em um tribunal militar do Texas, na semana passada, a cena era digna de uma novela. A acusada, soldado de primeira classe Lynndie R. England, segurando seu bebê de sete meses nos braços; o pai da criança, soldado Charles A. Graner Jr., prestando um depoimento que, segundo os advogados de England, arruinou a melhor oportunidade de um veredicto clemente para ela; enquanto, do lado de fora, esperava outra acusada por maus-tratos contra detentos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, Megan M. Ambuhl, que recentemente se casou com o soldado Graner, núpcias que a soldado England só descobriu dias antes de seu julgamento.
O tratamento dispensado pelos reservistas England e Graner aos prisioneiros iraquianos e seus envolvimentos pessoais produziram uma novela sombria, que culminou na cena vista na corte texana.
England e Graner começaram a namorar enquanto treinavam em sua unidade de reserva do Exército, a 372ª Companhia de Polícia do Exército, em Cresaptown, Maryland. Jovem arruaceira nascida na Virgínia Ocidental, a soldado England, 22, se casou aos 19 por capricho, disse a amigos, e contrariou os pais ao entrar para a reserva do Exército para juntar dinheiro para a faculdade.
O soldado Graner, 36, guarda penitenciário na Pensilvânia e ex-fuzileiro naval, se alistou na reserva do Exército por patriotismo, depois do 11 de Setembro. Acabara de passar por um desagradável divórcio, em 2000. A ex-mulher de Graner, Staci Morris, obteve três mandados de proteção contra ele e, depois que foi detido por perturbá-la, em 2001, Graner admitiu que a arrastara pelo cabelo.
Graner apresentou as duas mulheres uma à outra, e Morris disse ter sentido "alívio egoísta" com a possibilidade de que, tendo outra pessoa, o ex-marido abandonasse sua obsessão por ela.
Pouco depois que a 372ª Companhia recebeu ordens para transferência ao Iraque, o soldado Graner, a soldado England e um colega tiveram um último final de semana de festa em Virginia Beach. Beberam muito e, quando o amigo desmaiou, England e Graner se revezaram tirando fotos em que se despiam por sobre a cabeça do terceiro soldado.
No Iraque, England recebeu diversas punições por contrariar as normas militares e dormir com Graner. Certa noite, em outubro, ele a instruiu a posar para fotos em que segurava uma coleira presa ao pescoço de um prisioneiro nu, que se movia de quatro. Graner mandou uma das fotos por e-mail, para os EUA: "Vejam o que forcei Lynndie a fazer". As agora infames fotos de detentos se masturbando, disse ele, eram presente de aniversário para ela.
A especialista Ambuhl, que foi excluída do Exército, trabalhava em dupla com Graner no turno da noite. Enquanto Graner e England eram ruidosos e desordeiros -gravaram-se em vídeo enquanto faziam sexo-, Ambuhl era séria, tinha a fala mansa.
Ambuhl estava envolvida com outro soldado da unidade. Mas, pelo final de dezembro, pusera fim àquele relacionamento e começara a ver o soldado Graner. Em mensagens de e-mail, os dois relembravam de maneira onírica as noites roubadas em meio às celas lotadas de prisioneiros.
"Eu também sinto sua falta", ela escreveu pouco depois do Natal de 2003. "Quando ouvi sua voz, na escada, fiquei feliz e um pouco nervosa, também (mas nervosa de um jeito agradável)". Ela assegurou a Graner de que não voltaria para o ex-namorado.
Mas o soldado Graner não pusera fim a seu relacionamento com a soldado England. Em 2 de janeiro de 2004, foi apanhado dormindo no alojamento de England, e terminou demovido.
Ambuhl fantasiava sobre o momento em que os dois poderiam estar realmente sozinhos. "Será que vai ser estranho para nós dois, estarmos em uma sala juntos, sem a chance de alguém nos surpreender?", ela escreveu, dias depois. "Brincadeirinha. Mal posso esperar". Eles conversaram sobre tirar uma licença juntos, em fevereiro.
Mas, em 13 de janeiro, um soldado entregou a investigadores um CD contendo as fotos reveladoras dos detentos. A investigação começou no dia seguinte.
O soldado Graner, rapidamente identificado como líder do grupo responsável pelo abuso, enviou um e-mail ao seu pai, no começo de março, contando sobre as acusações que lhe eram movidas e depois soltou "mais boas notícias": a soldado England estava grávida de dois meses, e a gestação provavelmente faria com que ambos fossem enviados do Iraque de volta para os EUA. Eles descobriram que ela estava grávida dois dias depois que desmancharam. "Deixei de me encontrar com ela em janeiro, mas, quando essa porcaria toda apareceu, voltei a vê-la", escreveu. "Há boa chance de que eu seja o pai. Bom, olha o que papai trouxe da guerra???"
Ambuhl enviou um e-mail a Graner na metade de março, depois de encontrar fotos antigas dos dois, em que dizia que "parece um sonho, que tenhamos estado juntos, se é que podemos dizer que aconteceu".
England, mas não Graner, foi enviada de volta aos EUA, em razão da gravidez. O Exército transferiu o soldado Graner e Ambuhl para uma tenda separada de sua unidade. Lá, retomaram seu relacionamento. Em abril, Ambuhl enviou por e-mail ao soldado Graner um artigo com a manchete "Estudo constata que sexo freqüente eleva risco de câncer". E acrescentou: "Poderíamos ter morrido ontem à noite".


Tradução de Paulo Migliacci


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