São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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ARTIGO

Poder econômico crescente da Ásia começa a se traduzir em força político-militar; Ocidente deve adaptar-se ou ficará para trás

Força asiática ameaça hegemonia ocidental

Ahn Young-joon - 8.jul.2004/Associated Press
Fisiculturistas asiáticos participam das finais de uma competição internacional no Ginásio Olímpico de Seul, na Coréia do Sul; 160 atletas participaram da disputa


JAMES F. HOGE JR.
DA "FOREIGN AFFAIRS"

A transferência de poder do Ocidente para o Oriente está ganhando ímpeto e, em breve, alterará dramaticamente o contexto em que os desafios internacionais precisam ser enfrentados e os próprios desafios. Muita gente no Ocidente já está consciente do poder crescente da Ásia. Mas essa consciência ainda não se traduziu em preparação. Nisso existe um perigo: o de que os países ocidentais repitam os erros do passado.
Grandes mudanças no balanço de poder entre Estados, para não mencionar regiões, acontecem com pouca freqüência, e é raro que sejam pacíficas. No começo do século 20, a ordem imperial existente e as aspirações de Estados como Alemanha e Japão não chegaram a uma acomodação. O conflito resultante devastou grandes porções do planeta. Agora a transformação do sistema internacional será ainda maior e exigirá a assimilação de tradições populares e culturais notavelmente diferentes. Os populosos Estados da Ásia são os que buscam um papel mais importante. Como eram o Japão e a Alemanha, essas potências ascendentes são nacionalistas, querem corrigir injustiças do passado e desejam garantir um lugar ao sol. O crescente poder econômico da Ásia está se traduzindo em força político-militar, o que agrava o potencial de danos de um conflito. Na região, os pontos de conflagração no caso do surgimento de hostilidades (Taiwan, a península coreana e a Caxemira) desafiaram as tentativas de solução pacífica. Qualquer um deles poderia transformar-se em guerras que fariam que os atuais confrontos no Oriente Médio parecessem operações policiais. Há muita coisa em jogo na Ásia, e o Ocidente terá de demonstrar sua capacidade de adaptação.

China e Índia querem corrigir injustiças do passado e garantir um lugar ao sol. O poder econômico da Ásia está se traduzindo em força político-militar, o que agrava o potencial de danos de um conflito

Hoje a China é a mais evidente das potências em ascensão. Mas não é a única: a Índia e outros Estados asiáticos agora se vangloriam de índices de crescimento que podem superar os dos países ocidentais por décadas. A economia chinesa está crescendo mais de 9% ao ano; a da Índia, 8%. E os "tigres" do Sudeste Asiático se recuperaram da crise financeira de 1997 e retomaram sua marcha ao progresso. A economia chinesa deve atingir o dobro do tamanho da alemã até 2010 e superar a japonesa -hoje a segunda maior do mundo- até 2020. Se a Índia sustentar um índice anual de crescimento de 6% por 50 anos, como alguns analistas consideram possível, ela igualará ou superará a China naquele período.
Mesmo assim, a ascensão econômica extraordinária da China provavelmente continuará por muitas décadas caso -evidentemente- o país prove ser capaz de administrar as tremendas perturbações causadas pelo rápido crescimento, como a migração interna de áreas rurais para urbanas, os altos níveis de desemprego, a imensa dívida dos bancos e a corrupção generalizada. A China enfrenta um teste crucial em sua transição para a economia de mercado. Tem uma alta da inflação, bolhas no mercado de imóveis e uma crescente escassez de recursos cruciais, como o petróleo, a água e a eletricidade. Pequim está puxando as rédeas da política monetária e reprimindo os empréstimos bancários altos, enquanto mantém os esforços para resolver os problemas do setor bancário. Se as tentativas de desacelerar a economia não funcionarem, o país entrará em colapso.
Mesmo que temporária, uma crise teria conseqüências severas. A China é um participante tão essencial da economia mundial que sua saúde está inextricavelmente vinculada à do sistema. O mercado chinês se tornou o propulsor da recuperação para as demais economias asiáticas, que sofreram revezes nos anos 90. O Japão se tornou um grande beneficiário do crescimento econômico chinês. O PIB real do Japão subiu, em ritmo anualizado, 6,4% no último trimestre de 2003, o maior crescimento trimestral desde 1990. Graças à China, o Japão talvez esteja finalmente emergindo de uma década de aflições econômicas. Porém a tendência poderia se alterar se a China entrasse em colapso.
A Índia também ocupa uma posição de destaque. A despeito dos solavancos que reduzem o progresso de suas reformas econômicas, a Índia vem percorrendo uma trajetória positiva, propelida pelos seus prósperos setores de serviços empresariais e software, que prestam serviços a empresas internacionais. A regulamentação ainda é ineficiente, mas um quarto de século de reformas permitiu o surgimento de um setor privado dinâmico. O sucesso econômico também começa a mudar algumas atitudes básicas: após 50 anos, muitos indianos começam a descartar o sentimento de que são vítimas da colonização.
Outros Estados do Sudeste Asiático estão integrando suas economias de maneira mais profunda por meio de tratados de comércio e investimento. A China (não o Japão ou os EUA) desempenha o papel central nos acordos.
Os países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) estão, enfim, considerando seriamente a possibilidade de uma união monetária. O resultado poderia ser um bloco comercial que responderia por boa parte do crescimento econômico asiático e global.

Desgaste
Inevitavelmente, o sucesso vem acompanhado de diversas formas de desgaste. A primeira delas envolve as relações entre os principais Estados da região. A China e o Japão jamais foram poderosos ao mesmo tempo: por séculos, a China era forte, enquanto o Japão era uma nação empobrecida. Nos últimos 200 anos, a situação se inverteu, com um Japão forte e uma China fraca. Ter os dois países em situação favorável ao mesmo tempo será um desafio sem precedentes. Além disso, a Índia e a China ainda não resolveram suas disputas fronteiriças e continuam a desconfiar uma da outra. Será que as três potências se confrontarão pelo controle da região, pelo acesso às fontes de energia, pela segurança das rotas marítimas e pelo controle das ilhas do mar do Sul da China?
Na Ásia, cada um dos aspirantes à condição de potência está envolvido em conflitos territoriais explosivos, e suas sociedades sofrem desgastes internos: populações deslocadas, sistemas políticos rígidos, conflitos étnicos, instituições financeiras frágeis e corrupção. Como no passado, crises domésticas poderiam conduzir a confrontos internacionais.
Taiwan é o maior exemplo. Já faz 30 anos que os EUA vincularam seu reconhecimento diplomático da China a um pedido de solução pacífica da questão taiwanesa. Ainda que os vínculos socioeconômicos entre a ilha e o continente tenham aumentado, as relações políticas se deterioraram. Com seu atual presidente, Taiwan parece caminhar em direção à independência completa, enquanto a China continental continua a tentar manter o país isolado e o ameaça com cerca de 500 mísseis em posição de ataque. Para cumprir a promessa de proteger Taiwan, os EUA fornecem-lhe equipamentos militares sofisticados. Apesar das advertências dos EUA, se Taiwan cruzar a linha entre a autonomia e a independência (ou se a China perder a paciência), a região pode explodir.

Talvez essa rivalidade [entre a China e os EUA] venha a surgir, e os americanos devem se preparar para a eventualidade. Mas ela não é inevitável, e a cooperação ainda pode produzir avanços

A Caxemira continua dividida entre a Índia e o Paquistão, dois países que têm armas atômicas. Desde 1989, o conflito na região custou 40 mil vidas. A Índia e o Paquistão abrandaram a retórica dura recentemente, mas nenhuma das partes parece estar pronta para um acordo. Instabilidades político-econômicas no Paquistão poderiam facilmente deflagrar um conflito.
A Coréia do Norte é outro potencial ponto de conflagração. Rodadas recentes de negociações conduzidas sob os auspícios da China, com o envolvimento de seis países, não bastaram para convencer Kim Jong-il a abandonar seu programa de armas nucleares em troca de garantias de segurança e de assistência à decrépita economia norte-coreana. Em lugar disso, as conversações geraram recriminações aos EUA, por oferecerem pouco. À Coréia do Norte, por sua intransigência inabalável. E à China, por não aplicar pressão suficiente sobre Pyongyang. Novos indícios parecem indicar que os esforços nucleares da Coréia do Norte estão adiantados. Como disse o vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, aos líderes chineses, em abril, o tempo para uma solução negociada da crise pode estar se esgotando.

Mudança de prioridade
Por mais de meio século, os EUA deram estabilidade ao Pacífico por meio de sua presença militar, suas alianças com o Japão e a Coréia do Sul e seu compromisso com o fomento do progresso econômico. Em seus primeiros dias de governo, a equipe de George W. Bush enfatizou sua intenção de reforçar esses elos tradicionais e de tratar a China mais como uma concorrente estratégica do que como uma potencial parceira. Acontecimentos recentes, porém, entre os quais o 11 de Setembro, geraram uma mudança de ênfase na política externa americana. Hoje as expectativas em relação à Coréia do Sul, por exemplo, são bem menores do que no passado.
Ante a ascensão da China, uma Coréia do Norte equipada com armas atômicas e a crescente tensão em relação a Taiwan, o Japão está se sentindo inseguro. Por isso assinou acordo para desenvolver um sistema de defesa antimísseis com assistência dos EUA e vem considerando um relaxamento de seus limites constitucionais ao desenvolvimento e ao uso de forças militares no exterior.
Essas decisões foram vistas como causa de preocupação pelos vizinhos do Japão, que sentiriam desconforto ainda maior caso o país perdesse a fé nas garantias de segurança americanas e decidisse construir seu próprio sistema de dissuasão nuclear. Para os EUA, é ainda pior a possibilidade de a China e o Japão estabelecerem uma aliança estratégica.
Mas o Japão, por conta dos problemas econômicos e demográficos que o afligem, não pode ser o centro de um novo arranjo de poder na Ásia. Esse papel será desempenhado pela China e, posteriormente, pela Índia. As relações com os dois gigantes são, portanto, essenciais para o futuro, e o envolvimento construtivo deveria ser a ordem do dia, ainda que funcionários do governo Bush continuem convencidos de que os EUA e a China terminarão rivais. Para eles, a realidade estratégica envolve interesses incompatíveis.
Em termos militares, os EUA estão protegendo suas apostas por meio do mais extenso realinhamento de seu poderio militar em meio século. Parte desse realinhamento envolve a abertura de uma segunda frente na Ásia. Os EUA não dependem mais de uma série de grandes bases encravadas às margens do Pacífico. Hoje o país fez avanços significativos no coração da Ásia, instalando uma série de bases menores que servem como pontos de transição nas repúblicas da Ásia central. A razão para essas bases é a guerra ao terror. Mas analistas chineses suspeitam que a intenção seja conter a China sem exibir força ostensiva.
A China vem modernizando suas forças militares para aumentar sua capacidade de vencer um conflito com Taiwan e para deter agressões dos EUA.

Mudanças necessárias
Para acomodar a alteração no balanço de poder que vem ocorrendo rapidamente na Ásia, os EUA precisam de preparação vigorosa por parte de seu Executivo e do Congresso. A decisão do governo Bush de manter o envolvimento com a China representa uma melhora em relação à sua posição inicial, e essa mudança se refletiu nos esforços de Washington para trabalhar com Pequim na batalha contra o terrorismo e nas negociações com a Coréia do Norte. A mudança também se reflete na relutância em decidir disputas comerciais e cambiais por meio da imposição de tarifas. Mas, em outras frentes, Washington ainda não começou a mudar de abordagem. Os EUA parecem carentes de recursos. A despeito do aumento de sua carga de trabalho, a equipe diplomática dos EUA na China é só de mil pessoas, número equivalente à metade do total previsto para a nova embaixada no Iraque. O treinamento em idiomas asiáticos para funcionários do governo foi reforçado de maneira muito modesta. Quanto à próxima geração, há apenas alguns milhares de estudantes americanos matriculados na China, e mais de 50 mil chineses matriculados em escolas americanas.
No futuro, os EUA terão de exercer liderança na criação de acordos regionais de segurança, como o acordo pendente entre os americanos e Cingapura para expandir a cooperação na luta contra o terrorismo e contra a proliferação de armas de destruição em massa. Washington precisa também defender as economias abertas ou ficará fora de futuros acordos comerciais. Os americanos precisam evitar que suas atitudes forcem a concretização de sua profecia sobre uma futura rivalidade estratégica com a China. Talvez essa rivalidade venha a surgir, e os EUA devem se preparar para a eventualidade. Mas ela não é inevitável, e a cooperação ainda pode produzir avanços.
Internacionalmente, as potências ascendentes da Ásia precisam ganhar mais representação em instituições cruciais, começando pelo Conselho de Segurança da ONU. Este deveria refletir a configuração emergente do poder mundial, não contando apenas com os países vitoriosos na Segunda Guerra Mundial. O mesmo pode ser dito sobre outras organizações internacionais importantes. Um recente estudo do Instituto Brookings observou que "existe hoje uma assimetria fundamental entre a realidade mundial e os mecanismos existentes de governo global, com o G8 -um clube exclusivo de países industrializados que, primordialmente, representa a cultura ocidental- constituindo a expressão principal desse anacronismo".
O primeiro-ministro canadense, Paul Martin, adotou a idéia de transformar as reuniões do G20, composto por dez países industrializados e dez países em desenvolvimento, em encontros de chefes de Estado. Isso poderia incorporar ao governo econômico mundial os países dotados de grandes populações e de economias cada vez maiores.
A credibilidade e a efetividade das organizações internacionais depende de mudanças como essas. Só quando elas forem adotadas, as organizações poderão contribuir de maneira significativa para a paz entre as nações.
Ainda que, dificilmente, essas instituições possam ser classificadas de infalíveis, reestruturá-las de forma a refletir a distribuição de poder é um meio mais eficaz de criar esperança do que deixar que as instituições feneçam e permitir o retorno da política de balanço de poder irrestrita e imprevisível e da competição econômica sem limites.

James F. Hoge Jr. é editor da "Foreign Affairs". O artigo foi adaptado de uma palestra que ele deu na Escola Paul H. Nitze de Estudos Internacionais Avançados, da Universidade Johns Hopkins (Washington), e publicado na edição de julho/agosto da "Foreign Affairs".


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