São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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CHINA

Integrantes do mesmo clã trabalham há cinco gerações na Cidade Proibida, vivenciando as principais mudanças do país

História chinesa passa pela família Liang

CLÁUDIA TREVISAN
DE PEQUIM

A história da China dos últimos 120 anos pode ser contada pelos olhos da família Liang, que, há cinco gerações, trabalha na Cidade Proibida, o centro do poder no país desde o século 15. Os Liang acompanharam a derrocada do império, a invasão da China pelos japoneses, a guerra civil e a vitória dos comunistas em 1949.
Liang Jingsheng, 56, é o atual representante de uma tradição iniciada por seu tataravô, Liang Derun, no fim do século 19, na dinastia Qing. Derun e seu filho, Liang Shisi, eram pintores da corte e presenciaram as últimas décadas de um regime imperial de 2.200 anos, derrubado pela revolução republicana de 1911.
Quadros e tecidos pintados por ambos estão entre os 940 mil objetos espalhados pelas 9.999 salas da Cidade Proibida. Desde o avô de Jingsheng, Tingwei, os Liang deixaram de ser pintores e passaram a integrar o grupo responsável pela preservação desses artigos, chamados de "tesouros".
Nessa condição, vagaram pela China ao lado dos objetos na primeira metade do século 20, um dos períodos mais instáveis da história do país, marcado pela invasão dos japoneses e pela guerra civil, que só acabou com a Revolução Comunista, em 1949.
Tingwei trabalhou ao lado do último imperador, Pu Yi, derrubado em 1911 e confinado na parte residencial da Cidade Proibida por 13 anos. O governo republicano criou um grupo para cuidar das antigüidades da corte, do qual o avô de Jingsheng fazia parte.
Com a ameaça da invasão japonesa cada vez mais presente no início da década de 30, o Kuomintang (Partido Nacionalista), que estava no poder, decidiu reunir os principais tesouros da Cidade Proibida e transferi-los para o sul. Tingwei e sua família acompanharam a saga dos objetos pelas cidades de Xangai e Nanquim, na costa leste, e Chongqing, no centro da China.
Na noite de 5 de fevereiro de 1933, os artigos saíram da Cidade Proibida em 2.118 caixas enormes, que ocuparam 18 vagões de trem. Cem guardas acompanharam a transferência dos tesouros para Xangai, cidade que fica 1.300 quilômetros ao sul de Pequim.
O avanço dos japoneses forçou nova mudança, em 1936. Desta vez, para Nanquim, a 254 km de Xangai. No ano seguinte, uma semana antes de o Exército japonês entrar em Nanquim, o Kuomintang decidiu transferir os tesouros para Chongqing, a 1.205 km de Xangai. Em 13 de dezembro de 1937, ocorreu o Massacre de Nanquim, quando os japoneses mataram 300 mil habitantes da cidade, segundo dados chineses.
Em todo esse período, Tingwei, bisavô de Jingsheng, acompanhou as mudanças com sua família. Quatro anos depois, em 1941, seu filho Kuangzhong, então com 17 anos, começou a trabalhar como guarda nos depósitos dos tesouros, que estavam em diferentes lugares de Chongqing.
Nos anos seguintes, intensificou-se a guerra civil entre o Kuomintang, de Chiang Kai-shek, e o Partido Comunista, liderado por Mao Tse-tung. Pressentindo a derrota, os nacionalistas decidiram transferir parte dos tesouros para Taiwan, a ilha capitalista que é independente da China até hoje.
Em janeiro de 1949, Tingwei acompanhou a mudança dos objetos, enquanto seu filho Kuangzhong ficou cuidando dos tesouros que permaneceram em Chongqing. Os dois nunca mais se viram. Com a Revolução Comunista em outubro do mesmo ano, Tingwei permaneceu em Taiwan, junto com seu neto Liang Esheng, filho mais velho de Kuangzhong, que só voltaria a encontrar o pai em 1987, depois da abertura da China.
Kuangzhong trabalhou com os tesouros da Cidade Proibida por 61 anos, até 2002, e deu a seus cinco filhos nomes relacionados aos lugares pelos quais os objetos passaram. Jingsheng, por exemplo, é uma referência à cidade de Nanquim, que também é conhecida na China como Jin Ling.
Aos 20 anos de idade, Jingsheng não imaginava que seguiria um dia a tradição da família e embarcou na aventura da Revolução Cultural de Mao Tse-tung. A partir de 1966, milhares de jovens das cidades chinesas se mudaram voluntariamente ou foram enviados ao campo pelo Partido Comunista para serem "reeducados".
Em 1968, seduzido pela campanha maoísta, Jingsheng se mudou com um grupo de 11 amigos de Pequim para uma pequena vila da Mongólia Interior, no norte da China. Permaneceu lá por 11 anos, cultivando a terra e dando aulas na escola primária.
Só saiu em 1979, três anos depois do fim da Revolução Cultural, para que seu filho, Desheng, estudasse em Pequim. De volta à capital, fez concurso para trabalhar na Cidade Proibida e foi admitido, aos 31 anos.
Durante 23 anos, trabalhou próximo de seu pai. Depois de sua aposentadoria, em 1994, Kuangzhong foi recontratado pela Cidade Proibida e ficou mais oito anos trabalhando na avaliação do acervo do museu. Aos 80 anos, ele vive em Pequim.
Após 120 anos, a tradição dos Liang será interrompida com a aposentadoria de Jingsheng. Seu único filho, Desheng, não pode trabalhar na Cidade Proibida. A legislação atual proíbe que parentes de funcionários públicos trabalhem nos mesmos organismos.


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