São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

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ARTIGO

A morte do general e a volta de Allende

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pinochet começou a morrer em setembro de 2003, quando o Chile recordou os 30 anos do golpe que o levou ao poder. Até então a figura do ex-presidente Salvador Allende fora envolvida numa espécie de clandestinidade imposta por uma ditadura temerosa da força de seu simbolismo. Pinochet, o último a juntar-se aos generais que derrubaram Allende, com quem pouco tempo antes conversara de modo fraternal como novo comandante do Exército, tem as vozes gravadas em trocas de mensagens no dia do levante "sugerindo" o assassinato do presidente.
Seria condição necessária na opinião do oportunista que acabou se servindo do peso de sua arma para sobrepor-se aos demais generais. Mas não foi preciso. Allende cumpriu o que afirmara, que só morto sairia do palácio. Suicidou-se, fato que só muito mais tarde viria a público.
Uma porta lateral do La Moneda, sede do governo, por onde escaparam ou tentaram escapar íntimos de Allende já no final da "balacera", ficou durante anos fechada como se representasse tranca num allendismo. Foi reaberta nos 30 anos, significando o oposto, o fim da clandestinidade na qual submergiram, por forças das armas, os tempos de Allende.
Durante 30 anos, uma geração, Allende desapareceu da vida chilena, enterrado em sepultura discreta. De repente, a partir de setembro de 2003, fotografias suas começaram a aparecer às centenas penduradas em bancas de jornais e em outros locais públicos.
Fatos e versões da vida do presidente concorreram com "best-sellers". A Universidade do Chile realizou cerimônia com presença de vítimas da ditadura. As rádios tocavam repetitivamente "Gracias a la vida", de Violeta Parra, espécie de hino do allendismo, que se tornou um dos tantos egressos de um ostracismo forçado. Também passou a ser cantarolado nas ruas.
Em "el once", como ficou conhecido o golpe, Allende foi atacado em palácio por aviões da Força Aérea. Só nos 30 anos os chilenos viram as imagens filmadas dessas ações brutais. Não só uma vez. Apareceram em vários documentários, para a surpresa de chilenos que nem sequer sabiam da sua existência. O maior jornal do Chile, o "El Mercúrio", adversário feroz do governo de Allende, abriu suas páginas para que Carlos Altamirando, em 1973 um dos socialistas mais radicais, defendesse a sua atuação 30 anos antes. Alguém falou em "ressurreição de Allende", o que impunha contrapartida, o ocaso de Pinochet. Ele já não contava com seu último trunfo, a benevolência de quartéis que se "readaptavam".
Uma mulher vítima da ditadura, Michelle Bachelet, fora nomeada ministra da Defesa, a caminho da Presidência. Há um outro dado da morte prematura de Pinochet. Seus partidários civis, embora sem condições de contestar torturas, desaparecimentos e assassinatos à luz do dia, festejavam o fato, segundo eles, de que Pinochet fora um governante decente. Os pesados custos da detenção no Reino Unido, a pedido de um juiz espanhol, já punham isso em dúvida. Essa dúvida sumiu com a localização de contas secretas em bancos dos Estados Unidos com milhões de dólares. Os aniversários de Pinochet, épocas de manifestações de fidelidade, foram ficando rarefeitos. Para o ditador, já era a morte.


O jornalista NEWTON CARLOS é analista de questões internacionais


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