São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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GUERRA SEM LIMITES

Para o escritor americano, o Congresso dos EUA deveria investigar se o governo sabia sobre atentado ao WTC

"Petróleo motiva guerra afegã", diz Vidal

GARY KAMIYA
DA SALON

Gore Vidal é um americano com uma causa a defender. Quase expatriado, passou boa parte de sua vida em Roma e Ravello, retornando todos os anos, inexplicavelmente, a Los Angeles -talvez para juntar alguns fragmentos americanos para incluir em uma das bombas literárias de fragmentação que tem o costume de atirar contra Tio Sam (que vê como sendo cada vez mais perverso) a cada quantos anos.
Ele acaba de lançar ao mercado mais um desses tomos, "Perpetual War for Perpetual Peace: How We Came to Be So Hated" (Guerra perpétua pela paz perpétua: como nos tornamos tão odiados). Mais bombinha de são João do que granada, é um volume pequeno que retoma muitas coisas já ditas anteriormente, recosturadas para aproveitar o momento Osama bin Laden.
O primeiro ensaio, "Sept. 11, 2001 (A Tuesday)", foi rejeitado originalmente pela revista "The Nation", que publica os artigos de Vidal há muitos anos, aparentemente porque seu tom foi considerado leviano demais. Foi publicado em italiano, tornou-se best-seller e foi traduzido para uma dúzia de línguas. "Depois de Bin Laden e Timothy McVeigh, achei que seria útil descrever as diversas provocações cometidas de nosso lado e que os impeliram a cometer atos tão terríveis", escreve Vidal na introdução.
Em seguida, ele critica não apenas a resposta draconiana de Bush ao ataque, mas também a legislação antiterrorismo aprovada por Clinton e que ele vê como uma cura pior do que a doença. "Os danos físicos que Bin Laden e seus amigos podem nos causar, por terríveis que tenham sido até agora, não são nada quando comparados ao que ele está fazendo contra nossas liberdades", afirma.
E ele conclui com um longo rol das ações militares empreendidas pelos EUA desde a 2ª Guerra Mundial, desde Granada até o Panamá, passando por Haiti, Kosovo e Somália. "Nessas algumas centenas de guerras contra o comunismo, o terrorismo, as drogas ou, em alguns casos, contra nada de grande monta, entre Pearl Harbor e a terça-feira, 11 de setembro de 2001, nossa tendência sempre foi a de desferir o primeiro golpe", diz Vidal na conclusão de seu ensaio. "Mas nós somos os mocinhos, certo? Certo."
Gore Vidal, 76, falou à "Salon" desde sua casa em Los Angeles.

Pergunta - Você acha que os EUA são mais odiados do que foram outros impérios no passado?
Gore Vidal -
Não sei se somos singulares pelo fato de realmente inspirarmos bastante ódio pelo mundo afora, devido à maneira como impomos nossa presença. Mas a história toda no Afeganistão não diz respeito a Bin Laden e suas posições religiosas, embora elas guardem alguma relação com isso, mas a um grande golpe por parte dos EUA para apoderar-se de todo o petróleo e gás natural da Ásia Central. E foi isso que nos propusemos a fazer.
Bush pai garantiu o petróleo do golfo Pérsico, ou seja, Kuait, Iraque, Irã, os Emirados e assim por diante. Entretanto, muito maior do que o golfo Pérsico é o petróleo do mar Cáspio, do Uzbequistão e de todos os outros "istãos" que faziam parte da União Soviética. Estamos, há algum tempo, deliberadamente fechando um círculo em volta dessa parte do mundo -e foi por isso que fomos ao Vietnã.
Perguntamos "onde está Bin Laden?" porque sempre precisamos personalizar tudo. Tudo sempre se reduz a um homem mau, e, se o agarrarmos, conseguiremos acabar com o tráfico de drogas (é o que se diz). Você se lembra de Noriega? Se o pegássemos, seria o fim do tráfico de drogas. Bem, o pegamos, e o tráfico de drogas não acabou.
Assim, com Bin Laden, estamos dizendo que vamos nos vingar pela coisa terrível que ele fez -se é que o fez. Existem dúvidas consideráveis a esse respeito. É certo que ele sabia o que ia acontecer e que ajudou a financiar, mas pode muito bem ter sido cometido por outros. O que estávamos buscando era um gatilho. Já tínhamos planejado invadir o Afeganistão em outubro de 2001. Estamos e estávamos desesperadamente tentando instalar um oleoduto atravessando o Afeganistão, o Paquistão, indo até Karachi e chegando ao oceano Índico. Durante muito tempo tratamos com o Taleban, mas seus homens tinham se tornado doidos e desmiolados demais, a ponto de tornar-se impossível tratar com eles.
Então entramos no país para tentar estabilizar a situação, para que a Unocal [empresa americana de energia" possa construir um oleoduto. Assim, tudo isso diz respeito a petróleo. Ao menos uma vez na vida, estamos fazendo algo realmente prático e não tentando erradicar o mal, tarefa grandiosa demais para ser encarada até mesmo por um Bush.

Pergunta - Mas, mesmo supondo que a administração Bush estivesse sedenta por óleo na região, você não concorda que a intervenção militar americana no Afeganistão foi apropriada e necessária após o grande ataque que sofremos em 11 de setembro? Você diz que o petróleo foi uma preocupação maior do que o terrorismo?
Vidal -
A revelação involuntária foi feita quando Tommy Franks, o general que comanda nossas forças no Afeganistão, chegou lá, e as pessoas ficavam perguntando "onde está Osama bin Laden?". E ele disse que seria bom se encontrássemos Osama bin Laden, mas que não era realmente para isso que estávamos lá. E, de repente, (encontrar Bin Laden) foi mais ou menos colocado em segundo plano, e mais ou menos nos esquecemos disso, porque outras coisas tomaram seu lugar. Em outras palavras, nunca foi essa a motivação pura e simples. Entretanto, para fins de relações públicas, sempre devemos personificar uma única pessoa, de preferência como sendo malévola. Foi o que eu disse com relação a Noriega.
Seria de imaginar que, depois de termos sido atingidos como fomos em Nova York, haveria audiências imediatamente, como houve depois de Pearl Harbor -uma investigação para saber por que razão gastamos US$ 30 bilhões por ano com inteligência e não sabíamos sobre uma conspiração que, conforme se estima, deve ter levado cerca de quatro anos para ser posta em pé, para levar aqueles aviões até os alvos, destruindo nossos prédios e nossa gente. E não há investigação nenhuma.
Acontece que qualquer país em sã consciência, especialmente um país dotado de um setor militar tão enorme e orgulhoso quanto o nosso, investigaria por que razão levou 90 minutos para nossos caças decolarem. Em qualquer sequestro normal eles estariam lá no alto em cerca de cinco minutos, em qualquer parte do país. Mas levaram 90 minutos. Alguma coisa está acontecendo.

Pergunta - Você está afirmando que é possível que alguém nos EUA tivesse conhecimento prévio dos ataques de 11 de setembro?
Vidal -
É claro que sim. Adoro essa coisa de gostarmos de nos fazer passar por burros e incompetentes, em lugar de astutos e safados. Talvez seja mais fácil passar a idéia de incompetência para as pessoas aí fora. Mas acho que os contribuintes que pagam tanto quanto nós pagamos não ficam muito satisfeitos em saber que o FBI e a CIA não estavam sabendo de nada e não começaram a investigar a fundo, e que, quando a coisa acontece, o Congresso não começa a investigar por que razão eles não sabiam. Qualquer país em sã consciência, como foi o caso dos EUA de 50 anos atrás, investigaria. Descobriríamos imediatamente o que deu errado.

Pergunta - Seu argumento é que o governo sabia de antemão sobre o ataque de 11 de setembro e planejou fazer uso dele como pretexto para invadir o Afeganistão?
Vidal -
Você disse isso. Eu não disse. Acho que é uma possibilidade. Eu preferiria que o Congresso descobrisse isso por mim. É para isso que pagamos seus integrantes. Há coisa demais desse tipo acontecendo, e há uma espécie de política geral de que as pessoas não devem saber nada sobre nada. Essa classificação de documentos como sigilosos não é conduzida para que os perversos inimigos dos EUA não descubram nossos segredos, mas para que os americanos não descubram o que seu governo anda aprontando. E o que ele anda aprontando? Bem, o que faz mais sentido, agora que somos governados por uma junta de homens do petróleo e do Pentágono. A maior parte deles é do ramo do petróleo -ambos os Bushes, Cheney, Rumsfeld e assim por diante. Eles estão no poder, e este é o último grande golpe que irá beneficiá-los pessoalmente e, como estou certo de que eles sejam suficientemente patrióticos para acreditar, também vai beneficiar os EUA: que o país tenha acesso a esse imenso manancial de óleo da Ásia Central, através de diversos oleodutos.
Não podemos usar o Irã, porque já satanizamos demais os iranianos. Isso teria sido simples. A Turquia tem sido mais complicada. Mas a rota Paquistão-Afeganistão era uma boa solução, até o Taleban ficar maluco demais para nós. Para mim parece que é disso que se trata. Eles provavelmente conseguiriam fazer a população americana aceitar essa idéia. Você quer petróleo barato? A gasolina em todos os outros países é cara, mas nós temos a mais barata. Mas ela será ainda mais barata quando conseguirmos pôr as mãos nesse petróleo.
Então o que fizemos foi fechar um círculo em torno de toda essa área de repúblicas muçulmanas, a antiga União Soviética. Temos bases. Temos bases no Uzbequistão. E Putin concordou com nosso planos, porque nos vê como fator que contrabalança o movimento muçulmano nativo, que pode atrapalhar os russos.
Então há todo um mundo novo aí fora sendo construído, e ninguém está se dando ao trabalho de analisá-lo. Apenas ficamos discutindo se Osama bin Laden usa delineador nos olhos ou não.

Pergunta - Então você vê tudo isso como parte de uma estratégia?
Vidal -
Uma conspiração geopolítica em grande escala, e agora o império está abrindo suas asas sobre uma nova área da terra.

Pergunta - Deixe-me perguntar sobre o Oriente Médio. Muitos observadores acharam que a administração Bush, em função de seu pano de fundo petrolífero, seria muito menos pró-Sharon do que revelou ser. O que você acha que os EUA deveriam estar fazendo agora para tentar pôr fim a essa situação terrível no Oriente Médio?
Vidal -
Bem, parece que a última chance que se terá será o plano saudita para Israel. E a política doméstica torna o plano impossível mesmo para os seguidores de Bush, que devem muito pouco ao lobby de Israel. Seria muito mais fácil para eles do que para os democratas ignorar esse lobby. Mas eles foram bloqueados pelo Congresso. Então não vão fazer grande coisa, e a situação simplesmente vai evoluir por conta própria, à sua própria maneira sangrenta.
Há muitas versões fantásticas correndo soltas, e acho graça cada vez que uma delas volta de novo. Minha favorita é o fantástico acordo que Barak teria oferecido a Arafat, que o teria rejeitado porque curte o terrorismo, simplesmente, e adora explodir suicidas. Essa idéia já virou fato aceito em todo o mundo, especialmente nos EUA. Na realidade, o acordo oferecido a Arafat foi terrível. Se você tiver visto o mapa que eu vi, saberá que a proposta que Barak fez foi de dividir os palestinos da Cisjordânia em três blocos, cada um deles totalmente cercado por assentamentos e tropas israelenses. Então haveria três jaulas fechadas. Foi esse o grande acordo que Arafat rejeitou. Ele não teria permanecido no poder, se é assim que se pode chamar o que ele ocupa, por mais um dia se o tivesse aceitado.
Desde então, o pessoal da desinformação vem trabalhando duro, tanto que agora já pensamos que Israel realmente tinha oferecido a Arafat o próprio jardim do Éden, com água corrente, quente e fria, e que ele o recusou porque prefere o terrorismo. Ele supostamente adora isso, adora atentados suicidas. Para fazer essa mentira circular e ser aceita é preciso muita energia, muita paixão e muita astúcia. Mas não há uma palavra de verdade nela.

Pergunta - Você não acha que Bush teria capital político suficiente para buscar um acordo de paz real para a região, se quisesse?
Vidal -
Quem sabe o que ele quer? Mas não, ele não quer isso realmente. E acho que a prova disso foi vista alguns anos atrás, quando Arafat viria aos EUA para discursar na ONU, e o Senado aprovou uma resolução determinando que ele não seria autorizado a entrar no país. Bem, embora fisicamente esteja situada dentro dos EUA, a ONU oficialmente não está dentro do país. É uma entidade distinta. Mas proibiram a entrada de Arafat -e por dois terços dos votos. Não é preciso ser um grande especialista em questões parlamentares para saber que dois terços é só o que é preciso para passar por cima de um veto presidencial. Então Arafat não veio. É isso que Bush enfrenta. E, por mais que possam querer dar uma dura em Sharon, seus correligionários não podem fazer isso no Congresso. E não vejo como seria possível dar um jeito se dois terços do Senado -e é um Senado razoavelmente bom, desde o meu ponto de vista- se mantiverem irredutíveis nessa questão, ou por terem sido pagos, ou intimidados, ou qualquer outro motivo.


Tradução de Clara Allain



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