São Paulo, quarta-feira, 12 de setembro de 2001

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ANÁLISE

Ricupero vê atentado como ameaça à economia mundial

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Rubens Ricupero, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), vê no atentado de ontem um sinal de descontrole do sistema de segurança da maior potência do planeta que se junta a um descontrole tão ou mais preocupante na economia e na política mundiais.
Mesmo manifestando-se moderadamente otimista quanto à capacidade de reorganização racional dos EUA diante da tragédia, Ricupero avalia que os atentados terão efeitos muito negativos sobre a economia mundial, já em ciclo recessivo. A isso se somam, disse ele, as manifestações antiglobalização que vão criando um caldo de "insatisfação de causas distintas" pelo mundo.
Ex-ministro da fazenda do governo Itamar Franco e embaixador do Brasil em Washington entre 1991 e 1993, Ricupero falou à Folha por telefone, de Genebra:
 

Folha - Sob o impacto da tragédia, qual sua primeira avaliação do que aconteceu?
Rubens Ricupero -
Mesmo sem saber ao certo o que está por trás desses atentados, é um sinal muito grave de perda de controle. É uma perda em termos de segurança, pois revela que, mesmo com uma tecnologia sofisticada, você não consegue ter uma segurança perfeita. É curioso que os EUA, que estão lançando esse plano de mísseis contra mísseis, a "guerra nas estrelas", tenham sofrido um ataque devastador provavelmente não de um Estado, mas de um grupo de terroristas. Ataque esse que não partiu de mísseis, mas de uma arma com uma tecnologia muito menos avançada -aviões sequestrados.
O que ocorreu contrasta com a guerra do Kosovo. Lá, os americanos não tiveram baixa militar. Desta vez, em questão de horas, tiveram milhares de baixas.

Folha - Embora o risco de guerras entre Estados exista ainda hoje, no pós-Guerra Fria, ele parece bem menor do que essa ameaça difusa que representa o terrorismo.
Ricupero -
Exatamente. Acho que esse talvez seja o episódio mais dramático de toda a história dos últimos 30 anos, que mudou a natureza das ameaças à segurança. Presumivelmente, nesse episódio não há envolvimento de Estados. Se houver, será numa posição marginal. Mesmo o país mais poderoso do mundo está vulnerável. Já estive no Pentágono; é muito difícil entrar no prédio, mesmo para os embaixadores. São portões imensos de aço, vigiados por uma segurança muito sofisticada.

Folha - O sr. se referiu à vulnerabilidade do sistema de segurança norte-americano. Como esse episódio se relaciona ao descontrole econômico do mundo atual?
Ricupero -
Também temos uma perda de controle na economia. No momento atual, temos uma crise econômica nas três maiores economias industrializadas do planeta: EUA, Europa e Japão. Uma crise sincronizada, que os países procuraram evitar e não conseguiram. Além disso, se esse episódio de ontem tem relação com o Oriente Médio, o que é provável, é mais um sinal da perda de controle político. Até alguns meses atrás, havia um processo de paz em marcha na região. Hoje, não há mais nada. O sistema internacional todo, sejam os europeus, sejam os EUA, seja a ONU, não conseguiu encaminhar uma solução negociada para o conflito.
Portanto, são três episódios: um no domínio da segurança, outro no da economia e o terceiro no político. Neles, dá para ver como há uma perigosa perda de controle, apesar de todos os progressos tecnológicos, do poderio econômico, da euforia de anos atrás. Há ainda essas manifestações antiglobalização, também um sintoma de inquietação preocupante.

Folha - Um mal-estar difuso, sem alvo ou causas definidas.
Ricupero -
Um mal-estar de causas distintas que revelam como mudou o mundo em relação àquele triunfalismo da globalização, logo depois da queda do Muro de Berlim. É só lembrar o Fukuyama [Francis Fukuyama, cientista político e funcionário do Departamento de Estado dos EUA, que publicou em 1989 seu ensaio mais famoso, convertido em livro em 1992", com "O Fim da História". Parece irônico que um ensaísta americano que era até ligado ao governo tivesse escrito naqueles anos que a história havia acabado. Hoje, você vê o episódio mais grave de paralisia do poder americano em toda a sua história. A história, até aqui, acabou mal.

Folha - Como comparar o que ocorreu ontem ao ataque de Pearl Harbor, em 1941?
Ricupero -
Acho de certa forma mais grave, porque o ataque a Pearl Harbor ocorreu numa ilha distante. Hoje, isso está acontecendo no coração dos EUA.

Folha - Simultaneamente no coração financeiro e no coração da defesa norte-americana.
Ricupero -
Simbolicamente é uma coisa muito grave.

Folha - O sr. se referiu à falência ou à interrupção do processo de negociação no Oriente Médio. O governo Bill Clinton investiu nisso. Como o sr. avalia, à luz do que aconteceu ontem, o início do governo Bush? Há relação entre os atentados e o boicote dos EUA à conferência sobre o racismo?
Ricupero -
Não vejo uma relação direta com a posição diante da conferência. Era compreensível, como o governo anterior se engajou muito numa solução negociada e não conseguiu um resultado satisfatório, que o governo seguinte quisesse se distanciar de uma linha que não deu certo.
Acho que, infelizmente, o problema no Oriente Médio, sobretudo na relação entre Israel e Palestina, se degenerou de tal forma que ninguém conseguiu, até este momento, fazer voltar os contendores à mesa de negociação.
Também não poderia haver uma relação com a conferência do racismo, pois uma operação como essa [de ontem" foi obviamente tramada com muita antecedência. Isso tem raízes profundas, que devem remontar a ressentimentos mais antigos.

Folha - Diante desse quadro, o sr. avalia que tipo de retaliação por parte dos EUA? O que o sr. gostaria que acontecesse e o que o sr. acredita que possa acontecer?
Ricupero -
Na verdade, acho que o que vai acontecer é mais o menos o que acho que deve acontecer. Os americanos, nessa matéria, tem uma reação que não é emocional como a de outros países. Passado o primeiro choque e essa desarticulação inicial, eles vão retomar o controle. Vão começar fazendo uma grande investigação sobre quem está por trás disso e apertar muitos dispositivos de segurança que devem ter tido algumas e graves falhas.
Não acredito que reajam de uma forma precipitada. Ouvi o Bush falando. Ele está muito calmo e, ao mesmo tempo, firme.

Folha - O sr. descarta uma retaliação militar imediata?
Ricupero -
Descarto. Eles não saberiam nem contra quem fazê-la. O que é próprio desse tipo de terrorismo recente é que ninguém o assume. Quem assume, em geral, são esses simulacros de heróis que querem aparecer nos jornais, que telefonam. Quem faz um negócio desses não é maluco de dizer.

Folha - A ONU é impotente diante de episódios assim, não?
Ricupero -
A ONU não tem poder militar nem serve para isso. Nunca teve função de combate ao terrorismo; só manda força para países onde houve acordo. Esse assunto escapa da esfera da ONU. Agora, a ONU está evacuada. Ela só tem a força que os Estados queiram lhe dar, e nunca houve proposta nesse sentido.
Agora, uma coisa que eu gostaria de dizer é que acho importante que se tente prevenir o efeito psicológico que isso possa ter. De um ponto de vista do ânimo americano, isso os fortalecerá, porque todo país como os EUA e a Inglaterra, uma vez debaixo de ataque, tende a se unir e a reagir.
Eu tenho medo de que, num ambiente depressivo mundial, com perda de esperança no Oriente Médio e crise econômica, isso possa ter um efeito psicológico negativo nas expectativas em relação ao próprio ambiente econômico. Vai depender muito da capacidade de liderança de Bush.

Leia mais sobre os atentados nos EUA na Folha Online


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