|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMENTÁRIO
O retorno de Allende
NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM SANTIAGO
O salão lotado ouviu em absoluto silêncio uma voz de soprano
cantar "Gracias a la vida" sem
acompanhamento. Era a abertura
de um ato de reparação a professores e alunos da Universidade do
Chile punidos pela ditadura. A
música de Violeta Parra foi um
dos símbolos da época de Salvador Allende, também desapareceu da vida pública e, naquele
momento, voltava de modo contrito, sem a algazarra das "peñas",
seu ambiente violentado.
Não só pela identidade com a
Unidade Popular. O prolongado
estado de sítio acabou com a alegria das noites de Santiago. Mas se
configura afinal, depois de mais
de dez anos de redemocratização,
um regresso de marcas dessa época, e ele não se limita às solenidades de repúdio à ditadura.
"Gracias a la vida" é hoje uma
das músicas mais tocadas e mais
cantadas no Chile. Está nas rádios
a todo momento. Ajuda a compor
a avalancha de documentários de
televisão sobre o golpe. Há inclusive uma saturação de imagens libertadas dos arquivos, como as
dos ataques ao palácio presidencial.
Todo mundo fala sobre tudo. O
velho socialista radical Carlos Altamirando admite que errou na
dosagem em suas pressões para
que Allende pisasse no acelerador
da revolução e, com isso, armou
"espíritos e mãos".
O velho cacique comunista Luís
Corvalán diz que Allende deveria
ter feito um acordo com a democracia cristã. "Seria ruim, mas não
pior do que o golpe", ensina a
posteriori com base em experiências e espertezas.
Preocupado com as "imagens
negativas que se projetam sobre a
instituição militar", o comandante do Exército desandou a fazer
declarações. Até chegou a afirmar
que é "nula" a influência de Augusto Pinochet no Exército chileno.
Um dos livros mais vendidos é
"Allende, Como la Casa Blanca
Provoco su Muerte", de Patrícia
Verdugo. Já existe edição em português. O fato é que, no Chile, já se
discutiu praticamente tudo sobre
o golpe: Pinochet, a ditadura, seu
legado, etc.
Outro livro de Patrícia Verdugo,
sobre a chamada "caravana da
morte", um pelotão de fuzilamento itinerante, tirou acima de 200
mil exemplares. Foi o mais importante ponto de apoio das acusações criminais contra Pinochet.
Um dado do momento, absolutamente novo, é a glorificação de
Allende e dos símbolos de seu
tempo, como "Gracias a la vida" e
Violeta Parra.
Os quiosques nas ruas exibem
publicações de todos os tipos com
fotos de Allende e com seu nome
gravado em letras fortes. São biografias, pensamentos, odisséia,
martírio, etc. "O homem vai virar
santo", disse-me um amigo, em
tom de brincadeira.
A própria Patrícia Verdugo fala
das incontáveis estátuas de Allende e das praças com seu nome pelo mundo afora e que o mesmo
deve ser desencadeado no Chile. É
como se só agora os chilenos estivessem saindo do estado de sítio.
Quase 50% da população do Chile
nasceu depois do golpe de 1973,
tem menos de 30 anos.
Como eles estarão consumindo
tudo isso? É a pergunta voltada
para o futuro. O jornal "El Mercúrio", o mais vilipendiado -como
sócio do golpe-, continua sendo
o jornal de maior prestígio.
NEWTON CARLOS é jornalista e analista
especializado em questões internacionais
Texto Anterior: À esquerda, Allende se torna alvo de devoção Próximo Texto: Panorâmica - Reino Unido: Parlamento diz que relatório não foi alterado, mas acusa Hoon de omissão Índice
|