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São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 2003

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COMENTÁRIO

O retorno de Allende

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM SANTIAGO

O salão lotado ouviu em absoluto silêncio uma voz de soprano cantar "Gracias a la vida" sem acompanhamento. Era a abertura de um ato de reparação a professores e alunos da Universidade do Chile punidos pela ditadura. A música de Violeta Parra foi um dos símbolos da época de Salvador Allende, também desapareceu da vida pública e, naquele momento, voltava de modo contrito, sem a algazarra das "peñas", seu ambiente violentado.
Não só pela identidade com a Unidade Popular. O prolongado estado de sítio acabou com a alegria das noites de Santiago. Mas se configura afinal, depois de mais de dez anos de redemocratização, um regresso de marcas dessa época, e ele não se limita às solenidades de repúdio à ditadura.
"Gracias a la vida" é hoje uma das músicas mais tocadas e mais cantadas no Chile. Está nas rádios a todo momento. Ajuda a compor a avalancha de documentários de televisão sobre o golpe. Há inclusive uma saturação de imagens libertadas dos arquivos, como as dos ataques ao palácio presidencial.
Todo mundo fala sobre tudo. O velho socialista radical Carlos Altamirando admite que errou na dosagem em suas pressões para que Allende pisasse no acelerador da revolução e, com isso, armou "espíritos e mãos".
O velho cacique comunista Luís Corvalán diz que Allende deveria ter feito um acordo com a democracia cristã. "Seria ruim, mas não pior do que o golpe", ensina a posteriori com base em experiências e espertezas.
Preocupado com as "imagens negativas que se projetam sobre a instituição militar", o comandante do Exército desandou a fazer declarações. Até chegou a afirmar que é "nula" a influência de Augusto Pinochet no Exército chileno.
Um dos livros mais vendidos é "Allende, Como la Casa Blanca Provoco su Muerte", de Patrícia Verdugo. Já existe edição em português. O fato é que, no Chile, já se discutiu praticamente tudo sobre o golpe: Pinochet, a ditadura, seu legado, etc.
Outro livro de Patrícia Verdugo, sobre a chamada "caravana da morte", um pelotão de fuzilamento itinerante, tirou acima de 200 mil exemplares. Foi o mais importante ponto de apoio das acusações criminais contra Pinochet. Um dado do momento, absolutamente novo, é a glorificação de Allende e dos símbolos de seu tempo, como "Gracias a la vida" e Violeta Parra.
Os quiosques nas ruas exibem publicações de todos os tipos com fotos de Allende e com seu nome gravado em letras fortes. São biografias, pensamentos, odisséia, martírio, etc. "O homem vai virar santo", disse-me um amigo, em tom de brincadeira.
A própria Patrícia Verdugo fala das incontáveis estátuas de Allende e das praças com seu nome pelo mundo afora e que o mesmo deve ser desencadeado no Chile. É como se só agora os chilenos estivessem saindo do estado de sítio. Quase 50% da população do Chile nasceu depois do golpe de 1973, tem menos de 30 anos.
Como eles estarão consumindo tudo isso? É a pergunta voltada para o futuro. O jornal "El Mercúrio", o mais vilipendiado -como sócio do golpe-, continua sendo o jornal de maior prestígio.


NEWTON CARLOS é jornalista e analista especializado em questões internacionais


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