São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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PALESTINA ÓRFÃ

Para uns, Iasser Arafat não passou de um terrorista sanguinário; para outros, foi o maior herói de uma nação

Terrorista ou mártir?

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Poucos personagens da recente história mundial acumularam perfis tão contraditórios quanto os de Iasser Arafat. Pintaram-no como terrorista -é o que pensava o atual governo americano e boa parte dos israelenses- ou como o líder que colocou na agenda mundial uma causa popular no mundo árabe e em setores de esquerda identificados com as aspirações palestinas.
"Eu me sentia asfixiado naquele lugar depois de alguns minutos. Mas ele viveu ali dentro dois anos", disse Karma Nabulsi, ex-dirigente da Organização para a Libertação da Palestina, sobre os dois cômodos escuros e sem conforto que compunham seus aposentos em Ramallah.


Estimulou versão de que nascera em Jerusalém. A verdade é que foi no Cairo


O desconforto combina com a ascese dos santos e mártires. O dirigente palestino sabia construir sua imagem pessoal. Cumpria uma agenda diária de 18 horas. Alimentava-se pouco, não bebia. Dormia poucas horas por noite. Jamais saiu de férias e desconhecia o entretenimentos, como leituras, cinema ou TV.
Recebia US$ 100 milhões por ano dos emirados do Golfo até 1991. Mas esse dinheiro era para "a causa". Aparentemente não chegava até sua rotina.
Arafat passou boa parte da vida escondido, cercado por guarda-costas. Sofreu 40 tentativas de assassinato. Casou-se aos 62 anos durante o exílio em Túnis. Suha, de 28 anos, era sua secretária. Por 15 meses o casamento permaneceu sigiloso. Sentiu o peso da idade em 1992, com as seqüelas de um acidente aéreo no deserto da Líbia. O lábio inferior passou a tremer. Perdeu a segurança no movimento das mãos. Precisou delegar tarefas. Mas não abdicou do poder pessoal. Comportou-se como um déspota de hábitos monásticos até embarcar para morrer num hospital perto de Paris.
Arafat foi responsável pela manutenção de lacunas biográficas que nutriram sua mitologia pessoal. Espelhava-se no ex-presidente egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970), representante nos anos 1950 e 1960 de uma forma não-islâmica de nacionalismo.
O Fatah, partido do qual foi líder e que se tornou o núcleo da OLP, cresceu ao defender a destruição de Israel. Mesmo assim, em negociações de paz hoje sepultadas, reconheceu em 1993 o direito à existência de um Estado judaico em troca da criação de um Estado palestino, cujo nascimento ele não chegou a testemunhar.
Foi por essas negociações que ele dividiu em 1994, com os israelenses Yitzhak Rabin e Shimon Peres, o Prêmio Nobel da Paz.


Não quis ou não pôde desarmar terroristas que se reuniam sob a fé islâmica


Há duas versões sobre onde nasceu Mohammed Abdel Rahman Al Qudwa Al Husseini, seu nome original. Ele dizia ter sido em Jerusalém. A menção à cidade lhe dava um perfume de legitimidade para representar gerações que combateram Israel e anteriormente a presença britânica.
Mas ele em verdade nasceu no Cairo. Sabe-se pouco de sua primeira infância. Ele foi um dos sete filhos de um comerciante de tecidos de origem palestina e de uma palestina nascida em Jerusalém. Órfão aos 5 anos, passa a viver com um tio. Seu pai, com quem seu relacionamento foi sempre conflitivo e a cujo enterro ele não compareceu em 1952, entrega-o a uma irmã mais velha.
Matriculado em engenharia na Universidade do Cairo, desaponta-se com a criação de Israel. Chegou solicitar matrícula na Universidade do Texas. Mas não emigrou. Já era militante do grupo nacionalista Irmandade Islâmica.
Forma-se em 1956. Muda-se para o Kuait. Data de 1958 a criação do Fatah, organização clandestina de concepções nasseristas que se propunha a expulsar os judeus das terras vistas como ancestralmente árabes.
Seis anos depois, Arafat deixa o Kuait, fixa-se na Jordânia e passa a fazer política em tempo integral. Organiza atentados contra alvos judaicos. Participa da criação de uma federação de entidades palestinas que surge em 1964 sob a sigla OLP, da qual se torna, em 1969, o principal dirigente.
A organização se radicaliza após a Guerra dos Seis Dias, que em 1967 permitiu a Israel derrotar o Egito, a Jordânia e a Síria, países que também sofreram pesadas perdas territoriais.
A OLP se torna na Jordânia "um Estado dentro de outro Estado", o que ameaça o trono do rei Hussein. Em setembro de 1971 Hussein usa o Exército para neutralizar guerrilheiros palestinos, que são expulsos e, em companhia de seu líder, instalam-se no Líbano.
A presença palestina em Beirute é fator de desequilíbrio entre as forças étnicas e confessionais que já coexistiam com dificuldade desde o período de protetorado francês.
A situação se degrada em 1982, quando Israel invade o Líbano e ameaça os líderes palestinos ali instalados. Arafat, humilhado, vai para a Tunísia.
Viveu em Túnis numa espécie de clandestinidade. O eixo da OLP toma novo rumo por volta de 1988. Bem tardiamente, o nacionalismo palestino se convence de que Israel é um inimigo imbatível no plano militar. Arafat havia sido em 1974 o primeiro dirigente de um não-Estado a discursar na ONU. Comprometia-se a abandonar o terrorismo, em troca do reconhecimento do direito dos palestinos a um Estado. Mas só 14 anos depois reconheceria Israel.
Em 1991, na Guerra do Golfo, Arafat se isola das lideranças árabes ao se pôr ao lado de Saddam Hussein, invasor do Kuait. Passou a receber críticas de setores palestinos mais modernos -empresários, universitários- da Cisjordânia e Gaza. A clandestinidade e a atitude bélica geravam pouca transparência, favoreciam a sobrevivência de uma corte de bajuladores cuja corrupção, erros e deslizes Arafat fingia ignorar.
Mas a contestação cresceu com as negociações dos Acordos de Oslo (1993), que fixavam com Israel um cronograma para a criação de um Estado palestino. O reconhecimento explícito da "entidade sionista" enfureceu grupos religiosos com ramificações filantrópicas (Hamas, Hizbollah), que não abririam mão do terrorismo.
Em lugar de enfrentar e desarmar o terrorismo islâmico que o contestava, Arafat se mostrou tolerante. Vulnerabilizava a si mesmo durante as operações de retaliação de Israel.
Fixando-se em territórios palestinos em 1994, em razão dos Acordos de Oslo, é eleito presidente da ANP (Autoridade Nacional Palestina), em 1996. Em setembro de 2000 começa uma nova onda de atentados contra alvos israelenses, a "segunda Intifada".
Ariel Sharon, o general que em 1982 o caçou em Beirute, torna-se primeiro-ministro de Israel em fevereiro de 2001. Enfraquecido mais uma vez, isolado em Ramallah, Arafat não consegue se opor de modo eficaz à instalação de assentamentos judaicos na Cisjordânia e Gaza.
Arafat tampouco desarma as Brigadas dos Mártires de Al Aqsa, núcleo terrorista sem vínculos com os islâmicos e que é abrigado pelo organograma da OLP.
Começa um fluxo de ajuda financeira árabe que se traduz por bem poucos melhoramentos. O motivo é a corrupção. Arafat é acusado pelos palestinos "modernos" de se comportar como um emir absolutista, que permite o enriquecimento ilícito de um punhado de aliados e estimula de modo indireto que os palestinos mais pobres -e moralistas- sejam cooptados pelas redes assistenciais em torno das mesquitas.
Arafat condenou os atentados que os Estados Unidos sofreram no 11 de Setembro. Chegou a doar sangue para as vítimas da Al Qaeda em Washington e Nova York. Mas sua capacidade de dialogar com o governo norte-americano já estava reduzida a zero -em razão do terrorismo que alguns de seus aliados praticavam e também porque a política externa da Casa Branca entrava num estágio de incondicional apoio a Israel.
Há dois anos o presidente George W. Bush declarou que Arafat era um líder "politicamente morto". Iasser Arafat morreu num momento de baixa.


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