São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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ITÁLIA

Em entrevista à Folha, autor de investigação sobre o megaempresário diz que ele lavou dinheiro para o crime organizado

Livro acusa Berlusconi de elo com a máfia

Associated Press - 7.jun.1999
Silvio Berlusconi durante encontro com empresários em Milão


MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

MASSIMO GENTILE
EDITOR DE ARTE

Entre 1973 e 1975, Vittorio Mangano, que, à época, já era ligado à máfia e, mais tarde, foi condenado à prisão perpétua por homicídios a mando de mafiosos e narcotráfico, foi caseiro de uma vila de Silvio Berlusconi localizada perto de Milão. Porém os contatos entre eles não foram interrompidos quando o elo de Mangano com a Cosa Nostra se tornou público, pois o empresário milanês lavava dinheiro sujo da máfia.
A afirmação é de Marco Travaglio, repórter do diário italiano "La Repubblica" e co-autor do livro "L'Odore dei Soldi" (o cheiro do dinheiro), sobre Berlusconi. Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - Quem é Ennio Veltri, o co-autor do livro?
Marco Travaglio -
Ele é um parlamentar do partido Itália dos Valores, que foi fundado pelo juiz Antonio di Pietro (figura de ponta da Operação Mãos Limpas, que deu origem a processos contra vários políticos, empresários e funcionários públicos acusados de corrupção, entre outras coisas).
Quando ele fazia parte da Comissão de Vigilância Antimáfia do Parlamento, vários documentos chegaram às mãos de funcionários do Ministério Público de Palermo, que os entregaram à comissão parlamentar.
Os documentos envolviam seriamente Berlusconi e Marcello Dell'Utri, seu braço direito, com a máfia. Veltri percebeu que o Parlamento não tinha uma séria intenção de investigar um assunto tão controverso e chamou-me para escrevermos o livro.

Folha - Qual é o mistério em torno da fortuna de Berlusconi?
Travaglio -
Ainda hoje não são claros o número de holdings que compõem a Fininvest (sociedade que pertence a Berlusconi) e a composição de seu capital. Duas perícias ordenadas pelo Ministério Público de Palermo tentaram explicar esse mistério.
De 1978 a 1985, entrou nessas holdings uma enorme quantidade de dinheiro. Uma parte dele veio de capitais pessoais de Berlusconi. Outra parte importante veio de empréstimos bancários. Uma terceira parte (o equivalente a mais de US$ 220 milhões hoje) não tem origem clara.
Até agora, Berlusconi recusa-se a dizer de onde vem essa soma. Faz 20 anos que essa dúvida existe, e, segundo o Ministério Público de Palermo, esse dinheiro veio da lavagem de dinheiro da máfia.
Alguns mafiosos arrependidos já disseram em juízo que Stefano Bontade (ex-chefe da máfia, antecessor de Toto Riina e morto por ordem dele) depositou nas mãos de Dell'Utri boa parte dos lucros ilícitos da máfia, para que Berlusconi reciclasse o dinheiro.
Essa é uma das acusações que pesam sobre Dell'Utri. Uma das provas mais fortes da existência de pelo menos um contato entre Berlusconi e a máfia diz respeito a um caseiro da vila de Arcore (perto de Milão), que pertence a Berlusconi. Oficialmente, entre 1973 e 1975, o caseiro foi Vittorio Mangano, que, à época, já era ligado à máfia e, mais tarde, foi condenado à perpétua por homicídios a mando da máfia e narcotráfico.
Mangano foi contratado por Dell'Utri, e os contatos entre os dois continuaram até 1994, quando Mangano foi condenado.
Deputados da Força Itália visitaram Mangano na prisão diversas vezes. Além disso, Dell'Utri, no processo movido contra ele, confessou ter tido amizade com alguns mafiosos. Ele sempre se defendeu dizendo que não sabia que seus amigos eram mafiosos, coisa que, para um siciliano, é no mínimo muito estranha.

Folha - Qual foi verdadeiro papel de Dell'Utri na Fininvest?
Travaglio -
Ele foi colega de faculdade de Berlusconi e, nos anos 70, tornou-se seu secretário particular. Em 1978, Dell'Utri deixou Milão e foi trabalhar com um certo Rapisarda, que lavava dinheiro para Vito Ciancimino, o prefeito de Palermo que foi condenado por fazer parte da Cosa Nostra.
Em 1980, Dell'Utri voltou a trabalhar com Berlusconi para criar a Publitalia, que é a agência que coleta publicidade para empresas de mídia do empresário milanês. Em seguida, tornou-se o homem mais poderoso da Fininvest.
Segundo depoimentos dos arrependidos, o poder de Dell'Utri vem do papel que desempenhava ao pegar o dinheiro de um grupo mafioso e ao levá-lo para Milão.

Folha - E quanto à ligação de Berlusconi com Riina?
Travaglio -
Na metade dos anos 80, houve uma guerra pelo poder dentro da máfia. O grupo da cidade de Corleone assumiu o controle, matando ex-chefes mafiosos.
Riina assumiu não apenas o poder, mas também o relacionamento da máfia com Dell'Utri e Berlusconi. Um juiz da cidade de Caltanisetta (Sicília), chamado Luca Testaroli, está investigando esse caso. Já o Ministério Público de Florença está investigando a morte dos juízes antimáfia Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, ocorrida em 1992, e os atentados a bomba de 1993 em Roma, Florença e Milão, para saber se Berlusconi teve ligação com esses casos.
As bases do inquérito são os contatos de Berlusconi e Dell'Utri com o chefe mafioso Mangano e testemunhos de outros mafiosos arrependidos, que falam de um encontro entre Riina, Dell'Utri e Berlusconi exatamente na época em que Riina herdou à força a chefia da máfia. O sentido desse encontro teria sido renovar o elo financeiro que existia entre Berlusconi e o grupo que perdeu a guerra pelo poder na máfia.
Os atentados em Roma, Florença e Milão foram significativos porque representaram as primeiras ações claras da máfia fora da Sicília. São atentados políticos nesse sentido, pois serviram para preparar o terreno para lançar uma nova formação política.
À época, com o começo da Operação Mãos Limpas e por razões diferentes, tanto a máfia, na Sicília, quanto Berlusconi, em Milão, acreditavam que suas antigas garantias políticas, como os ex-premiês Bettino Craxi e Giulio Andreotti, estivessem se enfraquecendo. Ora, foi quando surgiu a idéia de fundar a Força Itália (partido político de Berlusconi).

Folha - Em seu livro, o sr. fala da última entrevista de Borsellino. Qual é o seu conteúdo e por que ela ficou escondida por tanto tempo?
Travaglio -
Mais que uma entrevista, é um testamento: ela foi gravada por dois jornalistas franceses em 21 de maio de 1992. Ou seja, dois dias antes da morte de Falcone e 50 dias antes da morte do próprio Borsellino.
Borsellino afirmou que o Ministério Público de Palermo, no qual trabalhava como chefe-adjunto, investigava o relacionamento entre Mangano, Berlusconi e Dell'Utri. Também disse que, em 1980, foi interceptada uma conversa telefônica entre Dell'Utri e Mangano. Nela, eles falavam sobre uma entrega de cavalos num hotel. Ora, cavalos não são entregues normalmente em hotéis.
Borsellino lembrou que, no "maxiprocesso" contra a máfia, na segunda metade dos anos 80, Mangano admitiu que o termo "cavalo" era usado como código para a palavra droga.
Descobrimos que a RAI (TV estatal) estava escondendo a fita, que havia sido descoberta pela filha de Borsellino, e a adicionamos ao material que já tínhamos.

Folha - Como o sr. vê o futuro da Itália com Berlusconi no poder?
Travaglio -
A informação passará a ser controlada. Além disso, Berlusconi anunciou que pretende pôr a Justiça sob o controle do Executivo: ou seja, ele terá domínio sobre o Parlamento, a Justiça e a informação. E tudo isso sem precisar acionar o Exército.
Além disso, há uma certa predisposição natural ao autoritarismo em Berlusconi. Ele personifica o ideal do pequeno empresário do norte, que resolve tudo sozinho. Como disse Enzo Biagi (comentarista político italiano), se Berlusconi tivesse seios, faria até o papel de apresentadora de TV.
Um dia, no estádio do Milan (clube de futebol que preside), ele disse que não entendia por que tinha de dar espaço à torcida adversária. Essa afirmação é absolutamente natural para ele.
No poder, ele será perigoso, pois é o homem mais rico da Itália e o 14º mais rico do mundo. Recentemente, estimou-se que ele tenha mais de US$ 900 milhões em fundos escondidos no exterior. Isso graças a 64 empresas que tem no exterior para esconder suas movimentações financeiras.

Folha - O sr. crê, portanto, que as perspectivas não sejam muito boas para o futuro do país?
Travaglio -
Se não fossem trágicas, as perspectivas seriam boas. O eleitorado italiano ainda não entendeu o perigo que Berlusconi representa e, só com sua eleição, poderá conscientizar-se.
Além disso, a centro-esquerda perceberá que a verdadeira ameaça pública não está nem em Gianfranco Fini (líder da Aliança Nacional) nem em Umberto Bossi (dirigente da Liga Norte), mas em Berlusconi. Assim, o país poderá enfrentar o problema da concentração da propriedade de meios de comunicação nas mãos do empresário milanês. Com isso, a Justiça poderá ser reformada para poder funcionar corretamente.
A centro-esquerda nunca teve coragem para enfrentar Berlusconi, pois parte dela não tem a ficha limpa. Junta-se a isso o fato de que a corrente do ex-premiê (Massimo) D'Alema preferiu legitimar Berlusconi como líder da direita para ter um adversário aparentemente mais fácil de ser batido.
É por isso que não fizeram a lei que protege a concorrência nos negócios, e, quando a magistratura quis impor um pedido de prisão contra parlamentares da Forca Itália, a centro-esquerda nunca permitiu que isso ocorresse.



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