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DIREITOS HUMANOS
Países em desenvolvimento querem utilizar conferência da organização sobre racismo para exigir reparação
ONU discutirá indenização por escravidão
DA REDAÇÃO
Países em desenvolvimento
africanos e asiáticos pretendem
utilizar a conferência da ONU sobre racismo, que será realizada
em Durban, na África do Sul, de
31 de agosto a 7 de setembro deste
ano, para exigir que os EUA, alguns países europeus, o Japão e
até o Brasil paguem reparação financeira pela escravidão, pelo tráfico de seres humanos e por outras injustiças do passado.
Na prática, no entanto, essa exigência de pagamento de indenização está longe de ser aceita pelas
antigas metrópoles coloniais ou
pelas colônias que fizeram uso de
mão-de-obra escrava. Além disso,
de um ponto de vista jurídico, vários fatos têm de ser esclarecidos
antes que qualquer demanda de
reparação possa ser feita.
A questão do pagamento de indenização pela escravatura foi levantada pela primeira vez nos
anos 80. Porém só ganhou força
em 1999, quando uma comissão
africana sobre o tema adotou a
Declaração de Acra (capital de
Gana), na qual países africanos
exigem o pagamento de US$ 777
bilhões pelo tráfico negreiro.
Segundo essa declaração, a reparação deve ser paga por "todos
os países e pelas instituições da
Europa Ocidental e das Américas
que participaram do comércio de
escravos e do colonialismo e que
deles tiraram proveito".
Essa exigência envolve algumas
perguntas cruciais. De que forma
os africanos e os asiáticos foram
afetados pela escravidão? Quem
deve ser responsável pelo pagamento da indenização? Que tipo
de pesquisa histórica deve ser feito para determinar o que ocorreu
durante os mais de três séculos de
tráfico de seres humanos? Como
pode ser medida a compensação
pela destruição de civilizações?
Quem tem o direito de receber o
pagamento da reparação?
E, acima de tudo isso, a reparação financeira seria a única forma
possível de compensação pelos
erros cometidos por potências coloniais no passado? A Comissão
de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas ainda
não trata diretamente do assunto,
pois, segundo uma funcionária da
entidade que não quis se identificar, ela tem de receber um mandato da ONU para poder fazê-lo.
Contudo, em reuniões preparatórias para a conferência de Durban, o assunto já foi discutido. De
acordo com o diplomata brasileiro Frederico Meyer, que trata do
assunto em Genebra, a questão da
indenização pela escravidão tem
gerado controvérsia e dividido os
países que participarão da cúpula
sobre racismo.
"Houve quatro reuniões preparatórias regionais sobre racismo.
Cada uma delas produziu uma
declaração, e as quatro deveriam
fundir-se num texto final: a Declaração de Durban. Porém essas
declarações concentraram-se demais nos interesses regionais, o
que tem dificultado nosso trabalho agora, já que as posições de
cada continente são muito distintas", explicou Meyer à Folha.
Caixa de Pandora
O debate acalorado sobre a escravidão e o comércio de seres
humanos corre o risco de abrir
uma caixa de Pandora. Afinal,
desde a Antiguidade, civilizações
poderosas escravizaram pessoas
oriundas de lugares que dominavam. Até mesmo na tão decantada democracia ateniense havia
trabalho escravo.
Assim, a real importância dessa
discussão é que ela reflete as frustrações de países menos abastados em relação a Estados mais ricos por causa da defasagem de
seus estágios de desenvolvimento
e de um sistema globalizado que
perpetua e agrava o problema.
Para o senegalês Doudou Diène,
diretor do projeto A Rota do Escravo, um estudo encomendado à
Unesco pela Comissão de Direitos
Humanos para esclarecer os fatos
que estiveram por trás de três séculos de tráfico negreiro, a questão da indenização financeira é
secundária. Para a Unesco, antes
que ela seja discutida, é necessário
que haja reparação moral ou ética
e reparação histórico-científica.
"A reparação moral ou ética é a
base para qualquer outro esforço.
Queremos que o tráfico de seres
humanos seja reconhecido como
crime contra a humanidade pela
Assembléia Geral das Nações
Unidas. Pleiteamos a admissão da
tragédia e do crime por toda a comunidade internacional", esclareceu Diène, de Paris.
O Parlamento francês classificou, na última quinta-feira, a escravidão e o tráfico negreiro como crimes contra a humanidade.
O presidente Jacques Chirac já defendia essa tese desde 1994.
O projeto coordenado por Diène tem como objetivo possibilitar
a reparação histórico-científica
para os africanos. Ele tem como
mandato pesquisar arquivos históricos sobre o tráfico negreiro,
torná-los acessíveis para acadêmicos e mobilizar a comunidade
internacional no sentido de determinar as circunstâncias, as causas
e as modalidades do comércio de
escravos africanos.
Seu objetivo é o de "colocar em
todos os livros de história do
mundo" o resultado dessas pesquisas objetivas, aprofundadas e
cientificamente enquadradas. "A
reparação histórica também é
fundamental", afirmou Diène.
Afinal, não se pode falar de indenização financeira sem que haja um dossiê de acusação claro e
bem estruturado, que só pode ser
feito após o esclarecimento de todos os fatores envolvidos no fenômeno da escravidão. Sem ele, as
questões levantadas acima jamais
poderão ser respondidas.
"Não podemos determinar o
valor de uma eventual reparação
financeira nem quem teria direito
a ela antes que as pesquisas históricas e científicas para estabelecer
o que realmente aconteceu durante os séculos de tráfico negreiro estejam terminadas. Esse trabalho, pelo qual sou responsável,
ainda vai demorar no mínimo
cinco anos", explicou Diène.
Objeto de discórdia
Contudo, mesmo que todos os
fatos sejam esclarecidos apesar da
dificuldade em encontrar documentos sobre uma prática que teve início há séculos, o pagamento
de indenização a Estados africanos e asiáticos ainda será objeto
de discórdia.
"A escravidão foi terrível, mas
os EUA pagaram por ela e purgaram seus pecados durante a Guerra da Secessão (1861-1865), um
conflito que causou mais de 600
mil mortes e pôs fim à escravidão
há 135 anos", disse Robert W.
Tracinski, editorialista da publicação "Capitalism Magazine".
Além disso, alguns historiadores aventam a tese de que os escravos africanos eram vendidos aos
brancos por líderes de tribos rivais. Sendo assim, os países africanos não teriam direito à reparação financeira, pois teriam participado do tráfico negreiro.
"É verdade que uma parte da
responsabilidade recai sobre os
sistemas feudais africanos, pois a
escravidão tradicional sempre
existiu no continente. Entretanto
trata-se de uma culpa secundária.
Os africanos foram cúmplices,
não agentes desse crime. O tráfico
negreiro foi criado e implantado
pelos brancos europeus. Quem
foi responsável pelos horrores do
Holocausto, os nazistas ou os
poucos judeus que colaboraram
com eles?", sustentou Diène.
Para ele, uma das formas mais
importantes de reparação passa
pelo reconhecimento internacional de que o tráfico negreiro é
uma das principais causas do subdesenvolvimento da África, pois
"os cerca de 100 milhões de pessoas que foram retiradas do continente eram fortes e saudáveis, o
que desestruturou totalmente os
países em que viviam e minou sua
capacidade produtiva".
Ora, para a África, ante a complexidade prática da causa defendida por aqueles que exigem indenização financeira, talvez o perdão da dívida externa dos países
africanos seja uma forma de reparação que, além de moral, é factível. Falta ainda pensar no que pode ser feito para compensar os erros cometidos por potências coloniais na Ásia.
Isso se o túnel do tempo não nos
remeter à Grécia antiga, pois os
moradores da ilha de Melos, baseados nos relatos de Tucídides
sobre a Guerra do Peloponeso,
poderiam exigir de Atenas reparação financeira por terem sido
vítimas do que chamamos hoje de
crimes contra a humanidade.
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)
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