São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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DIREITOS HUMANOS

Países em desenvolvimento querem utilizar conferência da organização sobre racismo para exigir reparação

ONU discutirá indenização por escravidão

DA REDAÇÃO

Países em desenvolvimento africanos e asiáticos pretendem utilizar a conferência da ONU sobre racismo, que será realizada em Durban, na África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro deste ano, para exigir que os EUA, alguns países europeus, o Japão e até o Brasil paguem reparação financeira pela escravidão, pelo tráfico de seres humanos e por outras injustiças do passado.
Na prática, no entanto, essa exigência de pagamento de indenização está longe de ser aceita pelas antigas metrópoles coloniais ou pelas colônias que fizeram uso de mão-de-obra escrava. Além disso, de um ponto de vista jurídico, vários fatos têm de ser esclarecidos antes que qualquer demanda de reparação possa ser feita.
A questão do pagamento de indenização pela escravatura foi levantada pela primeira vez nos anos 80. Porém só ganhou força em 1999, quando uma comissão africana sobre o tema adotou a Declaração de Acra (capital de Gana), na qual países africanos exigem o pagamento de US$ 777 bilhões pelo tráfico negreiro.
Segundo essa declaração, a reparação deve ser paga por "todos os países e pelas instituições da Europa Ocidental e das Américas que participaram do comércio de escravos e do colonialismo e que deles tiraram proveito".
Essa exigência envolve algumas perguntas cruciais. De que forma os africanos e os asiáticos foram afetados pela escravidão? Quem deve ser responsável pelo pagamento da indenização? Que tipo de pesquisa histórica deve ser feito para determinar o que ocorreu durante os mais de três séculos de tráfico de seres humanos? Como pode ser medida a compensação pela destruição de civilizações? Quem tem o direito de receber o pagamento da reparação?
E, acima de tudo isso, a reparação financeira seria a única forma possível de compensação pelos erros cometidos por potências coloniais no passado? A Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas ainda não trata diretamente do assunto, pois, segundo uma funcionária da entidade que não quis se identificar, ela tem de receber um mandato da ONU para poder fazê-lo.
Contudo, em reuniões preparatórias para a conferência de Durban, o assunto já foi discutido. De acordo com o diplomata brasileiro Frederico Meyer, que trata do assunto em Genebra, a questão da indenização pela escravidão tem gerado controvérsia e dividido os países que participarão da cúpula sobre racismo.
"Houve quatro reuniões preparatórias regionais sobre racismo. Cada uma delas produziu uma declaração, e as quatro deveriam fundir-se num texto final: a Declaração de Durban. Porém essas declarações concentraram-se demais nos interesses regionais, o que tem dificultado nosso trabalho agora, já que as posições de cada continente são muito distintas", explicou Meyer à Folha.

Caixa de Pandora
O debate acalorado sobre a escravidão e o comércio de seres humanos corre o risco de abrir uma caixa de Pandora. Afinal, desde a Antiguidade, civilizações poderosas escravizaram pessoas oriundas de lugares que dominavam. Até mesmo na tão decantada democracia ateniense havia trabalho escravo.
Assim, a real importância dessa discussão é que ela reflete as frustrações de países menos abastados em relação a Estados mais ricos por causa da defasagem de seus estágios de desenvolvimento e de um sistema globalizado que perpetua e agrava o problema.
Para o senegalês Doudou Diène, diretor do projeto A Rota do Escravo, um estudo encomendado à Unesco pela Comissão de Direitos Humanos para esclarecer os fatos que estiveram por trás de três séculos de tráfico negreiro, a questão da indenização financeira é secundária. Para a Unesco, antes que ela seja discutida, é necessário que haja reparação moral ou ética e reparação histórico-científica.
"A reparação moral ou ética é a base para qualquer outro esforço. Queremos que o tráfico de seres humanos seja reconhecido como crime contra a humanidade pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Pleiteamos a admissão da tragédia e do crime por toda a comunidade internacional", esclareceu Diène, de Paris.
O Parlamento francês classificou, na última quinta-feira, a escravidão e o tráfico negreiro como crimes contra a humanidade. O presidente Jacques Chirac já defendia essa tese desde 1994.
O projeto coordenado por Diène tem como objetivo possibilitar a reparação histórico-científica para os africanos. Ele tem como mandato pesquisar arquivos históricos sobre o tráfico negreiro, torná-los acessíveis para acadêmicos e mobilizar a comunidade internacional no sentido de determinar as circunstâncias, as causas e as modalidades do comércio de escravos africanos.
Seu objetivo é o de "colocar em todos os livros de história do mundo" o resultado dessas pesquisas objetivas, aprofundadas e cientificamente enquadradas. "A reparação histórica também é fundamental", afirmou Diène.
Afinal, não se pode falar de indenização financeira sem que haja um dossiê de acusação claro e bem estruturado, que só pode ser feito após o esclarecimento de todos os fatores envolvidos no fenômeno da escravidão. Sem ele, as questões levantadas acima jamais poderão ser respondidas.
"Não podemos determinar o valor de uma eventual reparação financeira nem quem teria direito a ela antes que as pesquisas históricas e científicas para estabelecer o que realmente aconteceu durante os séculos de tráfico negreiro estejam terminadas. Esse trabalho, pelo qual sou responsável, ainda vai demorar no mínimo cinco anos", explicou Diène.

Objeto de discórdia
Contudo, mesmo que todos os fatos sejam esclarecidos apesar da dificuldade em encontrar documentos sobre uma prática que teve início há séculos, o pagamento de indenização a Estados africanos e asiáticos ainda será objeto de discórdia.
"A escravidão foi terrível, mas os EUA pagaram por ela e purgaram seus pecados durante a Guerra da Secessão (1861-1865), um conflito que causou mais de 600 mil mortes e pôs fim à escravidão há 135 anos", disse Robert W. Tracinski, editorialista da publicação "Capitalism Magazine".
Além disso, alguns historiadores aventam a tese de que os escravos africanos eram vendidos aos brancos por líderes de tribos rivais. Sendo assim, os países africanos não teriam direito à reparação financeira, pois teriam participado do tráfico negreiro.
"É verdade que uma parte da responsabilidade recai sobre os sistemas feudais africanos, pois a escravidão tradicional sempre existiu no continente. Entretanto trata-se de uma culpa secundária. Os africanos foram cúmplices, não agentes desse crime. O tráfico negreiro foi criado e implantado pelos brancos europeus. Quem foi responsável pelos horrores do Holocausto, os nazistas ou os poucos judeus que colaboraram com eles?", sustentou Diène.
Para ele, uma das formas mais importantes de reparação passa pelo reconhecimento internacional de que o tráfico negreiro é uma das principais causas do subdesenvolvimento da África, pois "os cerca de 100 milhões de pessoas que foram retiradas do continente eram fortes e saudáveis, o que desestruturou totalmente os países em que viviam e minou sua capacidade produtiva".
Ora, para a África, ante a complexidade prática da causa defendida por aqueles que exigem indenização financeira, talvez o perdão da dívida externa dos países africanos seja uma forma de reparação que, além de moral, é factível. Falta ainda pensar no que pode ser feito para compensar os erros cometidos por potências coloniais na Ásia.
Isso se o túnel do tempo não nos remeter à Grécia antiga, pois os moradores da ilha de Melos, baseados nos relatos de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso, poderiam exigir de Atenas reparação financeira por terem sido vítimas do que chamamos hoje de crimes contra a humanidade.
(MÁRCIO SENNE DE MORAES)



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