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No palácio de Saddam
Os dois marines e a cerca de arame farpado que bloqueiam a entrada do Complexo Presidencial
de Bagdá ficaram para trás, no começo da longa alameda. Se o regime de Saddam Hussein tivesse
apenas um coração, esta seria sua
sede, esparramada por toda a
margem esquerda da curva que o
rio Tigre faz bem no meio da cidade. A área ocupada se estende da
ponte da República à 14 de Julho e
conta com pelo menos três palácios usados pelo ex-ditador.
A imagem de sua linha do horizonte em chamas ganhou fama
mundial na noite de 21 de março
último, quando virou alvo do
bombardeio mais violento despejado pela coalizão anglo-americana nesta guerra até agora. Desde
então, centenas e centenas de
bombas e mísseis encontraram
seus alvos aqui. Não à-toa, o serviço secreto dos EUA chamava a região de "Casa Branca iraquiana",
comparando-o com a sede do
Executivo norte-americano.
Na manhã de ontem, a Folha teve acesso a cinco prédios do complexo, dois bastante destruídos,
dois parcialmente inteiros e um
que resistiu intocado. Entre todos, o que mais impressiona é o
que nos afirmaram chamar Velho
Palácio, uma referência popular
bagdali que acabou caindo em desuso devido à sanha com que o
ex-presidente do Iraque mandava
construir residências para si próprio -são mais de 40 palácios espalhados pelo país, a maioria localizada dentro de Bagdá.
Não está completamente no
chão. Os sinais do bombardeio
são evidentes logo na entrada e no
longo corredor de mármore que
liga todas as salas, mas ironicamente os aposentos presidenciais
foram os menos atingidos. No
quarto, chama a atenção a presença de duas camas de casal. De fato,
o ex-presidente tem duas mulheres, das até quatro permitidas pela
lei islâmica, mas a mesma lei proíbe que vivam na mesma casa.
Assim, o mais provável é que
quando usasse as instalações Saddam dormisse sozinho em uma
das camas e apenas uma de suas
mulheres dormisse em outra, suposição reforçada pela presença
de uma penteadeira ao lado de somente uma delas. No banheiro, de
mármore preto e torneiras douradas, um armário ainda guarda remédios com rótulos em árabe e a
pia de porcelana traz um prosaico
pente. No escritório, verde e dourado, a mesa presidencial ainda
tem as chaves das gavetas, vazias.
A presença dos objetos cotidianos e a ausência de documentos
importantes têm uma mesma explicação: o complexo foi um dos
primeiros a ser ocupados pelos
marines depois da tomada do aeroporto internacional, o marco
zero da queda de Bagdá. Na manhã do dia 7 de abril, tanques já se
espalhavam pelas ruas e batedores revistavam cada cômodo de
cada prédio em busca de informações relevantes. Com isso, o local
é um dos únicos que não foi saqueado pela população.
Um pouco antes na alameda
principal, ficava o Conselho dos
Ministros, prédio de dez andares
em forma de pirâmide que foi
bombardeado dezenas de vezes
desde o dia 20. No fim da rampa,
aparece caída uma das folhas da
porta de entrada com o brasão da
República, a fechadura ainda
trancada. Guardava o salão principal, com um chafariz no meio,
uma cúpula no teto e chão de
mármore rosa, que ainda está
morno e vai se dissolvendo como
farelo enquanto o repórter e o fotógrafo andam pelo interior.
À frente, do outro lado da rua,
olhando para o afresco com um
Saddam agora desfigurado, ergue-se o clube do Secretariado
Presidencial, onde dormia a temida guarda particular do ex-ditador e que hoje é ocupada por uma
das divisões dos marines. No salão de jogos, camas de campanha
cercam uma mesa de sinuca. Numa delas, o soldado Gonzalez joga
videogame, sob o olhar de reprovação do sargento Patrick. Eles
não têm a mesma sorte dos oficiais, que ocuparam a sala de TV,
com ar-condicionado.
Sorte diferente tiveram também
os soldados iraquianos que ocupavam uma das trincheiras cavadas no gramado que recebe quem
chega à sede do Ministério do Planejamento, uns 200 metros ao sul
do Secretariado. Um saco de pão,
botas largadas e maços de cigarro
pela metade denunciam que eles
saíram às pressas, seja no primeiro bombardeio, seja na chegada
das tropas invasoras. Tão às pressas que deixaram para trás a
maior parte das armas.
Há duas caixas verde-militar
com 20 granadas nunca utilizadas
cada uma, fabricadas pela então
União Soviética em 31 de março
de 1983, como mostra a etiqueta
colada dentro. Ao lado, outra caixa um pouco maior traz dez morteiros de mão. A Folha contou pelo menos seis pentes completos
do fuzil russo Kalashnikov e quatro máscaras antigás, além de um
saco de balas. O esconderijo deve
ter passado despercebido pelos
americanos, que dizem ter destruído ou confiscado todas as armas encontradas até agora.
E no entanto fica a poucos metros de uma das entradas principais do complexo, que ontem de
manhã recebia seis tanques norte-americanos, um deles com um
soldado de braços erguidos, comemorando a vitória talvez cedo
demais.
(SÉRGIO DÁVILA)
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