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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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No palácio de Saddam

Os dois marines e a cerca de arame farpado que bloqueiam a entrada do Complexo Presidencial de Bagdá ficaram para trás, no começo da longa alameda. Se o regime de Saddam Hussein tivesse apenas um coração, esta seria sua sede, esparramada por toda a margem esquerda da curva que o rio Tigre faz bem no meio da cidade. A área ocupada se estende da ponte da República à 14 de Julho e conta com pelo menos três palácios usados pelo ex-ditador.
A imagem de sua linha do horizonte em chamas ganhou fama mundial na noite de 21 de março último, quando virou alvo do bombardeio mais violento despejado pela coalizão anglo-americana nesta guerra até agora. Desde então, centenas e centenas de bombas e mísseis encontraram seus alvos aqui. Não à-toa, o serviço secreto dos EUA chamava a região de "Casa Branca iraquiana", comparando-o com a sede do Executivo norte-americano.
Na manhã de ontem, a Folha teve acesso a cinco prédios do complexo, dois bastante destruídos, dois parcialmente inteiros e um que resistiu intocado. Entre todos, o que mais impressiona é o que nos afirmaram chamar Velho Palácio, uma referência popular bagdali que acabou caindo em desuso devido à sanha com que o ex-presidente do Iraque mandava construir residências para si próprio -são mais de 40 palácios espalhados pelo país, a maioria localizada dentro de Bagdá.
Não está completamente no chão. Os sinais do bombardeio são evidentes logo na entrada e no longo corredor de mármore que liga todas as salas, mas ironicamente os aposentos presidenciais foram os menos atingidos. No quarto, chama a atenção a presença de duas camas de casal. De fato, o ex-presidente tem duas mulheres, das até quatro permitidas pela lei islâmica, mas a mesma lei proíbe que vivam na mesma casa.
Assim, o mais provável é que quando usasse as instalações Saddam dormisse sozinho em uma das camas e apenas uma de suas mulheres dormisse em outra, suposição reforçada pela presença de uma penteadeira ao lado de somente uma delas. No banheiro, de mármore preto e torneiras douradas, um armário ainda guarda remédios com rótulos em árabe e a pia de porcelana traz um prosaico pente. No escritório, verde e dourado, a mesa presidencial ainda tem as chaves das gavetas, vazias.
A presença dos objetos cotidianos e a ausência de documentos importantes têm uma mesma explicação: o complexo foi um dos primeiros a ser ocupados pelos marines depois da tomada do aeroporto internacional, o marco zero da queda de Bagdá. Na manhã do dia 7 de abril, tanques já se espalhavam pelas ruas e batedores revistavam cada cômodo de cada prédio em busca de informações relevantes. Com isso, o local é um dos únicos que não foi saqueado pela população.
Um pouco antes na alameda principal, ficava o Conselho dos Ministros, prédio de dez andares em forma de pirâmide que foi bombardeado dezenas de vezes desde o dia 20. No fim da rampa, aparece caída uma das folhas da porta de entrada com o brasão da República, a fechadura ainda trancada. Guardava o salão principal, com um chafariz no meio, uma cúpula no teto e chão de mármore rosa, que ainda está morno e vai se dissolvendo como farelo enquanto o repórter e o fotógrafo andam pelo interior.
À frente, do outro lado da rua, olhando para o afresco com um Saddam agora desfigurado, ergue-se o clube do Secretariado Presidencial, onde dormia a temida guarda particular do ex-ditador e que hoje é ocupada por uma das divisões dos marines. No salão de jogos, camas de campanha cercam uma mesa de sinuca. Numa delas, o soldado Gonzalez joga videogame, sob o olhar de reprovação do sargento Patrick. Eles não têm a mesma sorte dos oficiais, que ocuparam a sala de TV, com ar-condicionado.
Sorte diferente tiveram também os soldados iraquianos que ocupavam uma das trincheiras cavadas no gramado que recebe quem chega à sede do Ministério do Planejamento, uns 200 metros ao sul do Secretariado. Um saco de pão, botas largadas e maços de cigarro pela metade denunciam que eles saíram às pressas, seja no primeiro bombardeio, seja na chegada das tropas invasoras. Tão às pressas que deixaram para trás a maior parte das armas.
Há duas caixas verde-militar com 20 granadas nunca utilizadas cada uma, fabricadas pela então União Soviética em 31 de março de 1983, como mostra a etiqueta colada dentro. Ao lado, outra caixa um pouco maior traz dez morteiros de mão. A Folha contou pelo menos seis pentes completos do fuzil russo Kalashnikov e quatro máscaras antigás, além de um saco de balas. O esconderijo deve ter passado despercebido pelos americanos, que dizem ter destruído ou confiscado todas as armas encontradas até agora.
E no entanto fica a poucos metros de uma das entradas principais do complexo, que ontem de manhã recebia seis tanques norte-americanos, um deles com um soldado de braços erguidos, comemorando a vitória talvez cedo demais. (SÉRGIO DÁVILA)


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