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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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Saddam cai, mas conflitos ficam

SHIBLEY TELHAMI
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

A relevância do conflito árabe-israelense para a política americana em relação ao Oriente Médio voltará a ser largamente discutida, agora que o regime de Saddam desmorona.
O próprio tema dessa relevância já assumiu contornos de questão política. O público árabe em vários países teme que, se o conflito for visto como pouco importante, isso signifique que o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, terá luz verde para seus termos, e seus governos temem que a atenção do mundo se volte às estruturas políticas autoritárias deles.
Enquanto isso, os israelenses receiam que, se importância demais for dada à questão, os EUA pressionem Israel e lhe imponham algo que não seja de seu agrado.
Esses temores intensificam o senso de insegurança de Israel e o senso difuso de fraqueza dos países árabes, estados psicológicos quase tão fundamentais para compreender o conflito quanto as diferenças entre os dois lados e que, além disso, atrapalham a visão na discussão da política americana para o Oriente Médio.
A realidade é que os EUA não podem impor uma solução. Apenas um acordo que atenda aos interesses vitais de ambos os lados, baseado em concessões mútuas, pode alcançar paz duradoura.
Mas ainda é fato que apenas os EUA podem ajudar as duas partes a chegar à mesa de negociações. A não ser que a administração Bush faça da resolução do conflito árabe-israelense uma de suas prioridades, a política americana mais ampla na região terá problemas.
A questão árabe-israelense continua a ser o prisma pelo qual a maioria dos árabes enxerga os EUA. É verdade que não é a única. Mesmo fora do Oriente Médio, o ressentimento contra os EUA é forte em áreas onde essa questão é secundária. Assim, não é razoável supor que a paz entre árabes e israelenses possa eliminar os desafios dos EUA na região. Mas esse problema cria a distorção de visão que dificulta a solução de outros.
Seria surpreendente se o conflito não ocupasse lugar de destaque nas preocupações dos árabes. Desde a criação do Estado de Israel, em 1948, cinco grandes guerras árabe-israelenses moldaram a psicologia coletiva de gerações.
A maioria dessas guerras foi devastadora -e perdida pelo lado árabe. Seu impacto tem sido real nas vidas dos palestinos e de boa parte das populações de Egito, Síria, Jordânia, Líbano e outros. A questão dos refugiados palestinos e do derramamento contínuo de sangue -agora mostrado pela TV- constituem lembranças diárias do senso amplamente difundido de fraqueza e humilhação no mundo árabe.
A Palestina, em especial, se tornou uma questão de identidade para a maioria dos árabes. Embora seu papel não seja idêntico, possui semelhanças com o que Israel hoje tem na identidade judaica: podemos nos opor a Ariel Sharon, mas, se a sobrevivência de Israel parece estar ameaçada e inocentes são mortos, é difícil não nos unirmos em sua defesa.
Ao longo dos anos, muitos governos árabes e outros exploraram a questão palestina em vantagem própria. Quando a coalizão cercou Bagdá, Saddam declarou: ""Viva o Iraque! Viva a Palestina!". São atos de manipulação. Mas usam a questão palestina precisamente porque não há outra que mexa tanto com as pessoas na região, atuando como atalho para seu senso de identidade coletiva.
Nos sistemas políticos autoritários do mundo árabe, a opinião pública é, ao menos em parte, produto do que o governo diz ou faz. Mas seria um erro supor que a maior parte da visão que se tem do conflito árabe-israelense seja fruto do controle do governo.
Os países que têm tido paz com Israel e relações estreitas com os EUA e que são dependentes deles, como Egito e Jordânia, se tornaram objetos da ira de suas populações devido à emoção crescente que envolve a questão.
Apesar dos esforços do governo, a opinião pública na Jordânia continua a reagir aos acontecimentos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, criando desafios sérios para a monarquia. E, apesar das tentativas do governo egípcio de reduzir o repúdio público aos EUA (porque entende-se que esse repúdio pode se voltar contra o próprio presidente, Hosni Mubarak), a fúria não arrefeceu.
Sempre haverá muitos no mundo árabe que irão se opor aos EUA por razões ideológicas e outras. O verdadeiro desafio consiste em marginalizar esses grupos.
A região enfrenta sua batalha potencial própria entre as forças da intolerância e da militância, de um lado, e, do outro, aqueles que buscam a tolerância, as reformas e a solução pacífica das disputas.
A responsabilidade por essa batalha é em grande medida das forças da própria região, e é delas a responsabilidade última de pôr fim ao conflito árabe-israelense. Mas a continuação do sofrimento visível gerado por esse conflito acaba beneficiando as forças que os EUA querem ver derrotadas.
Quando refletimos sobre o futuro da política americana na região após a guerra do Iraque, algo permanece igual: nenhuma estratégia que vise reduzir a militância, o antiamericanismo e a repressão no Oriente Médio poderá dar certo se não for priorizado um esforço para mediar uma paz justa entre árabes e israelenses.


Tradução Clara Allain


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