São Paulo, terça-feira, 14 de junho de 2005

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COMENTÁRIO

Por que emudeceram Saddam?

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Lá estava, parecido com as vítimas que ele via em suas telas de televisão, um homem de palavras censuradas, argumentos ignorados, envolvido em um processo tão pouco democrático quanto os "tribunais de justiça" em que Saddam costumava destruir os seus inimigos.
Os iraquianos ou, sejamos francos, os norte-americanos -que tentaram censurar a aparição anterior do velho réprobo no tribunal- decidiram ontem que as palavras dele seriam igualmente censuradas. Isso é saddamismo. Era assim que Saddam governava o Iraque.
As palavras foram obliteradas. E agora os norte-americanos e o obediente governo liderado pelos xiitas que eles controlam estão adotando a mesma linha saddamita.
As imagens, admitiu a BBC, "não tinham som". O que isso quer dizer, em nome de Deus? Quem emasculou a BBC a ponto de levá-la a afirmar algo tão ridículo? A BBC não nos informou.
Se Saddam realmente estiver sendo acusado por crimes de guerra em razão da matança de xiitas -e espero que esteja-, por que, então, em nome dos céus, não podemos ouvir o que ele tinha a dizer? Por que usar os métodos de Saddam? O filme sem som, a presunção de culpa? Ou Saddam estava informando ao tribunal que os Estados Unidos haviam apoiado seu regime, que Washington lhe havia fornecido meios de destruir os curdos de Halabja com gás venenoso?
Como poderemos saber? E, quando tantos de nossos irmãos jornalistas não se dispuseram a contestar os motivos para que o vídeo fosse mudo, o que isso diz a nosso respeito? Somos informados, pelos carcereiros de Saddam, evidentemente, de que ele está sendo interrogado sobre o assassinato de aldeões xiitas ao sul de Bagdá, em 1982. Espero que seja verdade. Mas como termos certeza?
A realidade é que Saddam pertence ao passado do Iraque, algo da era anterior à "nossa" insegurança e destruição e ao estupro, insurreição e morte que agora assolam o país.
Sim, há aqueles que gostariam de ver Saddam entregue à Justiça. Mas querem segurança, lei, ordem e liberdade -querem estar livres de nós, também- antes de se preocuparem com o julgamento desse velho insano. Mas nós insistimos em que os iraquianos tenham pão e circo antes de terem liberdade. E eles devem experimentar nossa democracia aprendendo que o réu, em um julgamento, deve ser calado e ter negado o poder da palavra, a fim de aparecer nas TVs ocidentais.


Tradução de Paulo Migliacci

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