São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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NOVA ERA
Atividade ganha fachada legal através de empresas transnacionais que prestam serviços a governos
ONU denuncia globalização dos mercenários

Associated Press - 5.out.95
Soldado das Ilhas Comores, na costa leste da África, cumprimenta mercenário que participou de um golpe de Estado ocorrido no país em 95


OTÁVIO DIAS
da Reportagem Local

A atividade dos mercenários passou na última década por uma transformação profunda que aponta para a mesma direção das tendências atuais de globalização, valorização e liberalização do mercado.
De indivíduos com experiência militar dispostos a atuar em conflitos armados em troca de salário, os mercenários estariam se transformando em proprietários ou empregados de empresas legais, com alto nível de profissionalização, capazes de realizar operações militares nos mais diversos pontos do planeta.
É o que afirma o peruano Enrique Bernales Ballesteros, relator especial da Comissão de Direitos Humanos da ONU, que desde 87 investiga, a pedido da entidade, atividades mercenárias ao redor do mundo.
Essas empresas, formadas por ex-militares de países com Forças Armadas competentes como Estados Unidos, Reino Unido e África do Sul, autodefinem-se como especialistas em assuntos militares e de segurança e oferecem seus serviços a governos ameaçados por conflitos internos ou companhias instaladas em regiões instáveis.
Entre os serviços propostos estão a estruturação e o treinamento dos efetivos militares de países menos desenvolvidos ou em processo de formação, auxílio na compra de equipamento bélico e planejamento de operações militares. Mas há denúncias de que algumas dessas companhias terminariam se envolvendo diretamente em conflitos internos e operações militares.
Há, entretanto, uma diferença em relação aos mercenários mais tradicionais. As referidas empresas garantem que só prestam serviços a governos cuja legitimidade seja reconhecida internacionalmente e defendem a regulamentação internacional da atividade.

Privatização da segurança
O limite estabelecido pelas empresas, no entanto, não convence a ONU (Organização das Nações Unidas), que considera a nova tendência uma perigosa proposta de "privatização da segurança nacional e internacional".
"Considero muito perigoso quando, dentro das tendências atuais de valorização do mercado, entende-se que não há limites diante de nada. Ou seja, que as regras de mercado podem funcionar inclusive para a segurança nacional e internacional", disse à Folha o relator Enrique Bernales, professor de direito constitucional da Universidade Católica de Lima (Peru).
"A segurança faz parte das atribuições e competências do Estado nacional, que não pode renunciar à obrigação de dar segurança à sua população e garantir a integridade de suas fronteiras. Se o Estado renuncia à segurança, praticamente deixa de ser Estado", afirma.
Para ele, não é válido o argumento de que a atividade seria legítima se autorizada por governos reconhecidos internacionalmente.
"Isso é relativo", diz. "O regime do apartheid na África do Sul, por exemplo, era constitucional. E os ativistas do Congresso Nacional Africano eram tratados como terroristas. As coisas mudaram depois, e o CNA está no governo", diz ele.
"É sumamente perigoso dar legitimidade para a atividade mercenária porque, em certos casos, ela poderia ser usada contra movimentos de libertação nacional legítimos", afirma Bernales, membro da Comissão Andina de Juristas.
Segundo o relator, é responsabilidade da ONU e de organismos regionais de segurança auxiliar governos deficientes em termos de segurança.
"Se o que a ONU faz para garantir a paz e salvaguardar a segurança coletiva parece insuficiente, é preciso reforçar os mecanismos à disposição da entidade e torná-los mais eficazes", afirma.

Pouca responsabilidade
Ele também vê um fator de risco e insegurança "na existência de empresas transnacionais que formem exércitos, forneçam armas e transportem tanques de guerra, aviões e artilharia pesada pelo mundo".
Por fim, o professor Enrique Bernales considera que as empresas de segurança militar tenderiam a praticar mais violações de direitos humanos, pois não teriam a mesma responsabilidade dos Estados nessa questão.
"A atividade mercenária fere não só a soberania dos Estados e o direito de autodeterminação dos povos como também é uma ameaça à própria vida das pessoas", afirma o professor Enrique Bernales Ballesteros.



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