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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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UMA VISÃO EUROPÉIA

Reação islâmica aos EUA é ambígua

Prevalece a visão de que o 11 de Setembro foi um pretexto dos EUA para lançar uma ofensiva no Oriente Médio


DA REPORTAGEM LOCAL


Leia os principais trechos da entrevista de Olivier Roy, professor do Instituto de Ciências Políticas de Paris. (JBN)  

Folha - Quais os efeitos que o 11 de Setembro ainda tem nas indagações que o mundo muçulmano faz sobre sua própria identidade?
Olivier Roy -
A questão se coloca em patamares diferentes. Bin Laden alegou ter agido em nome dos muçulmanos. Mas a comunidade não se reconhece no islamismo dele. Ao mesmo tempo Bin Laden desperta simpatias ao se situar como porta-voz do antiimperialismo, do antiamericanismo. O antiimperialismo é consensual no mundo árabe e muçulmano. Prevalece a impressão de que o 11 de Setembro foi um pretexto para os EUA lançarem uma ofensiva de peso no Oriente Médio. Contra ela a reação muçulmana é ambígua, sem conteúdo necessariamente religioso. É mais política.

Folha - Mas a Al Qaeda tem um discurso de conteúdo religioso.
Roy -
Certamente. Ocorre que a mensagem religiosa de Bin Laden não é aceita. As idéias de seu grupo encontram simpatia quando interpretadas no plano político.

Folha - Como se dá a discussão?
Roy -
As manifestações mais inequívocas partiram de lideranças religiosas. O mulá Kaladawi, que é egípcio, mas mora em Qatar, homem respeitado no mundo muçulmano, claramente condenou os atentados do 11 de Setembro. Ele fez uma distinção entre o terrorismo de Bin Laden, a seu ver ilegítimo, e os atos palestinos.

Folha - E como essas posições atingem a opinião pública?
Roy -
De início, até 2002, prevaleceu a crença de que o 11 de Setembro não era terrorismo muçulmano, que os americanos haviam forjado tudo ou que era obra do Mossad, o serviço secreto israelense. Mas agora é inegável que Bin Laden foi o autor. Ele já assumiu. Há uma crise de modelos de representação. A única certeza é que os EUA usaram o terrorismo como pretexto para ocupar o Iraque. Os líderes religiosos são em geral contraditórios, perplexos.

Folha - Se essa perplexidade ocorresse na França, teriam havido colóquios, números especiais de revistas. E no mundo muçulmano?
Roy -
Não há liberdade intelectual para isso. Mesmo regimes mais antiislâmicos, como o da Argélia, são ditatoriais. Num país como a Tunísia, por exemplo, é impensável ter um colóquio livre.

Folha - Não há publicações periódicas em que exista discussão?
Roy -
Como regra, eu diria o seguinte: os intelectuais muçulmanos que têm algo a dizer não o fazem em revistas islâmicas. Escrevem em publicações européias.

Folha - Nessas publicações de fora, é possível perceber tendências?
Roy -
Não há tendências novas. As que já existiam foram obrigadas pelas novas circunstâncias a explicitar suas posições. Há, em primeiro lugar, os liberais. Penso mais particularmente no caso de Muhammad Harkoun [orientalista e professor emérito da Sorbonne]. Esse grupo até agora evitava polêmicas, por crer que teria de se contrapor publicamente a outros muçulmanos e, com isso, se assemelhar aos ocidentais. Mas agora eles se exprimem claramente. Embora o façam fora do mundo muçulmano. Publicam artigos em Paris, em Londres, em Los Angeles. Mas não no Cairo, em Argel, em Damasco. Esse grupo também ficou mais didático. Em lugar de uma formulação mais filosófica, pensa mais no público jovem, em textos mais simples.

Folha - E os outros grupos?
Roy -
Há em segundo lugar aqueles que eu chamaria de "fundamentalistas centristas" ou moderados. Na França, é por exemplo a UOIF (União das Organizações Islâmicas da França). Os ataques do 11 de Setembro os levaram ainda mais para o centro. A UOIF defende que as mulheres possam cobrir a cabeça com véu em locais públicos. Mas, há dias, disse que, se uma lei obrigasse as adolescentes a irem às escolas públicas com a cabeça descoberta, as famílias muçulmanas deveriam respeitar. É um tipo de legalismo que provavelmente a UOIF não adotaria há cinco ou dez anos.

Folha - Como encaixar nesse quadro a deterioração do processo de paz entre Israel e os palestinos?
Roy -
Os muçulmanos acomodaram-se à idéia de que, nesse conflito, nada podem esperar dos EUA. Acreditam que em qualquer circunstância os americanos estarão com Israel. A Europa, porém, tem posição mais nuançada. Por haverem divergências entre EUA e Europa, os muçulmanos europeus sentem-se mais europeus. Sobre o Iraque ou sobre a Palestina, sentem-se próximos da posição dos governos e da opinião pública dos países em que vivem.

Folha - Há também, como novidade no mundo árabe, a crise de legitimidade da monarquia saudita.
Roy -
Os jovens muçulmanos da Europa se identificam com os palestinos. Mas não há identificação com a Arábia Saudita, que aliás financia os movimentos fundamentalistas. A crise na monarquia saudita tem efeitos nessas redes de militância. Os sauditas não abdicaram de pregar um ensino islâmico ortodoxo, fundamentalmente antiocidental, que funciona como caldo de cultura para o radicalismo. Há nisso um paradoxo. A família real saudita percebe que está financiando os grupos que a atacam. Procura sutilmente mudar de rumo. Quer agora, na França, financiar a restauração da grande mesquita, que pertence aos moderados, aos argelinos.

Folha - Sua primeira especialidade foi o Irã. Há potencial de instabilidade no regime islâmico de lá?
Roy -
Não creio que se esteja perto de uma crise no Irã. Os conservadores tiram proveito da situação criada no Iraque para ganhar posições em detrimento dos liberais. Mas há no Irã um quadro de equilíbrio, que deve se manter.

Folha - De que forma a presença militar dos EUA na fronteira iraniana fortaleceu os líderes xiitas?
Roy -
Haveria reações de conteúdo nacionalista, e não necessariamente religioso, na remota hipótese de os EUA tentarem derrubar o regime do Irã. Os iranianos também têm meios para criar problemas para os americanos no Iraque, se quiserem. Eles têm redes de apoio. Mas não chegaram a tanto até agora. Estão comedidos.

Folha - O Irã não exerce o poder religioso sobre os xiitas do Iraque?
Roy -
As coisas são um pouco mais complicadas. A cidade sagrada de Najaf, no sul do Iraque, torna-se muito rapidamente um centro de ensino xiita. Com isso, os aiatolás iranianos tendem a perder o monopólio teológico que exerciam quando Saddam reprimia os xiitas iraquianos. Um Iraque mais ou menos democrático e majoritariamente xiita fará concorrência aos conservadores que hoje predominam no Irã. É por isso que esses mesmos conservadores iranianos têm todo o interesse de que a situação do Iraque permaneça como está, com os americanos desgastados pela ocupação.

Folha - Há um consenso de que os EUA caíram numa armadilha que eles próprios armaram no Iraque.
Roy -
Os EUA se apoderaram do Iraque segundo a lógica dos neoconservadores. Ou seja, como uma etapa para a remodelação institucional do Oriente Médio. Depois do Iraque viriam a Síria e o Irã na expansão do modelo liberal e democrático. Mas há também no governo americano os pragmáticos, como o secretário de Estado, Colin Powell, para os quais expandir a ação americana na região criaria mais problemas do que os que podem ser resolvidos. Os pragmáticos querem a estabilização do Iraque e a retirada das tropas. Eu diria que os americanos estão na metade da travessia de um rio. Ou eles retornam à margem, ou eles atravessam.


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