São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 2005

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"Eu vi a onda de choque chegando"

ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"

Eu vi a onda de choque vindo da Corniche [avenida beira-mar de Beirute]. Minha casa estava a poucas centenas de metros da explosão e meu primeiro instinto foi olhar para cima, buscando os aviões israelenses a grande altitude que regularmente quebram a barreira do som sobre Beirute.
Então eu vi clientes saindo ensangüentados de restaurantes com as janelas quebradas, e a enorme mancha de fumaça emergindo da rua do Hotel St George.
Beirute é minha segunda casa, distante dos perigos de Bagdá, e agora aqui era Bagdá no Líbano, um massacre de Dia dos Namorados [em boa parte do mundo, dia 14 de fevereiro] nas ruas de uma das cidades mais seguras do Oriente Médio. Eu corri para a Corniche, quando todo mundo corria na direção oposta, até entrar em uma massa de escombros e carros em chamas.
Havia um homem gordo caído na calçada oposta à do hotel danificado pela guerra e ainda abandonado. Pensei que fosse um saco, até que vi o topo de seu crânio. Havia também na rua uma mão de mulher, ainda vestindo uma luva. Havia corpos queimando em um carro, e uma mão terrível pendendo da janela do motorista.
Ainda não havia policiais, ambulâncias ou bombeiros. Os tanques de gasolina dos carros começaram a explodir, espalhando chamas pela rua. Eu não podia verificar a extensão dos danos por causa do calor e da fumaça.
Então eu vi um homem que eu conhecia, um dos guarda-costas de Rafik Hariri, aterrorizado. "O chefão se foi", ele disse. O chefão? Hariri? Encontrei um repórter da Associated Press que tinha ouvido a mesma coisa. De início eu pensei que o ex-primeiro-ministro do Líbano, o "Sr. Líbano", o homem que mais do que ninguém reconstruiu essa cidade das cinzas da guerra civil, tinha partido, "ido embora", escapado.
Hariri só viajava em um comboio de Mercedes pesadamente armado. Não espanta que a explosão tenha sido tão intensa. Ela precisava ser, para poder romper as portas blindadas dos carros.
A cratera no local da explosão tinha pelo menos quatro metros de profundidade. A bomba fez um carro -talvez um daqueles do comboio de Hariri- ir parar no terceiro andar do anexo do hotel vazio, onde ele ainda queimava violentamente.
Hariri, eu ficava dizendo para mim mesmo. Eu havia sentado com ele muitas vezes, para entrevistas, em conferências de imprensa, para almoços e jantares. Ele uma vez me falou, comovido, sobre o filho que perdeu num acidente de carro nos EUA. Ele me disse que acreditava em vida após a morte.
Ele tinha muitos inimigos. Inimigos políticos no Líbano, sírios, que suspeitavam -corretamente- que ele os queria fora do país. Inimigos nos negócios -pois ele tinha comprado pessoalmente grandes áreas de Beirute-, e inimigos na imprensa, pois ele possuía um jornal e uma rede de TV.
Em todas as ruas circundantes, homens e mulheres saíam com as roupas ensangüentadas. A mistura de sangue e água tornava a rua escorregadia. Eu contei um total de 22 carros explodindo e queimando. O bilionário saudita que havia jantado com reis e príncipes, cuja amizade pessoal com Jacques Chirac ajudou o Líbano a renegociar sua dívida pública de US$ 41 bilhões, terminou sua vida nesse inferno.
Privadamente, ele não escondia sua animosidade para com o Hizbollah, cujos ataques às tropas de ocupação israelenses, antes de sua retirada no ano 2000, haviam prejudicado seus planos de recuperação econômica para o Líbano. Quanto aos sírios, se ele os tolerava, também tinha planos para a retirada de seus militares do país. Seria verdade, como se dizia por aqui nos últimos tempos, que Hariri era o líder secreto da oposição política à presença síria?
Qualquer um que visasse assassinar Hariri saberia que tal ato poderia reabrir todas as fissuras da guerra civil de 1975-1990. Milhares de seus partidários, em prantos, reuniram-se do lado de fora de seu palácio em Koreitem na noite de ontem, querendo saber quem havia matado seu líder. Os homens de Hariri cruzaram a cidade ordenando aos comerciantes que fechassem suas portas.
Os fantasmas da guerra civil despertarão de seus quinze anos de descanso? Eu não sei a resposta. Mas aquela nuvem negra que flutuou por mais de uma hora sobre Beirute ontem à tarde provocou um obscurecimento sobre quem estava abaixo dela que ia além de sua mera sombra.


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