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"Eu vi a onda de choque chegando"
ROBERT FISK
DO "INDEPENDENT"
Eu vi a onda de choque vindo da
Corniche [avenida beira-mar de
Beirute]. Minha casa estava a
poucas centenas de metros da explosão e meu primeiro instinto foi
olhar para cima, buscando os
aviões israelenses a grande altitude que regularmente quebram a
barreira do som sobre Beirute.
Então eu vi clientes saindo ensangüentados de restaurantes
com as janelas quebradas, e a
enorme mancha de fumaça emergindo da rua do Hotel St George.
Beirute é minha segunda casa,
distante dos perigos de Bagdá, e
agora aqui era Bagdá no Líbano,
um massacre de Dia dos Namorados [em boa parte do mundo, dia
14 de fevereiro] nas ruas de uma
das cidades mais seguras do
Oriente Médio. Eu corri para a
Corniche, quando todo mundo
corria na direção oposta, até entrar em uma massa de escombros
e carros em chamas.
Havia um homem gordo caído
na calçada oposta à do hotel danificado pela guerra e ainda abandonado. Pensei que fosse um saco, até que vi o topo de seu crânio.
Havia também na rua uma mão
de mulher, ainda vestindo uma
luva. Havia corpos queimando
em um carro, e uma mão terrível
pendendo da janela do motorista.
Ainda não havia policiais, ambulâncias ou bombeiros. Os tanques de gasolina dos carros começaram a explodir, espalhando
chamas pela rua. Eu não podia verificar a extensão dos danos por
causa do calor e da fumaça.
Então eu vi um homem que eu
conhecia, um dos guarda-costas
de Rafik Hariri, aterrorizado. "O
chefão se foi", ele disse. O chefão?
Hariri? Encontrei um repórter da
Associated Press que tinha ouvido a mesma coisa. De início eu
pensei que o ex-primeiro-ministro do Líbano, o "Sr. Líbano", o
homem que mais do que ninguém reconstruiu essa cidade das
cinzas da guerra civil, tinha partido, "ido embora", escapado.
Hariri só viajava em um comboio de Mercedes pesadamente
armado. Não espanta que a explosão tenha sido tão intensa. Ela
precisava ser, para poder romper
as portas blindadas dos carros.
A cratera no local da explosão
tinha pelo menos quatro metros
de profundidade. A bomba fez
um carro -talvez um daqueles
do comboio de Hariri- ir parar
no terceiro andar do anexo do hotel vazio, onde ele ainda queimava
violentamente.
Hariri, eu ficava dizendo para
mim mesmo. Eu havia sentado
com ele muitas vezes, para entrevistas, em conferências de imprensa, para almoços e jantares.
Ele uma vez me falou, comovido,
sobre o filho que perdeu num acidente de carro nos EUA. Ele me
disse que acreditava em vida após
a morte.
Ele tinha muitos inimigos. Inimigos políticos no Líbano, sírios,
que suspeitavam -corretamente- que ele os queria fora do país.
Inimigos nos negócios -pois ele
tinha comprado pessoalmente
grandes áreas de Beirute-, e inimigos na imprensa, pois ele possuía um jornal e uma rede de TV.
Em todas as ruas circundantes,
homens e mulheres saíam com as
roupas ensangüentadas. A mistura de sangue e água tornava a rua
escorregadia. Eu contei um total
de 22 carros explodindo e queimando. O bilionário saudita que
havia jantado com reis e príncipes, cuja amizade pessoal com
Jacques Chirac ajudou o Líbano a
renegociar sua dívida pública de
US$ 41 bilhões, terminou sua vida
nesse inferno.
Privadamente, ele não escondia
sua animosidade para com o Hizbollah, cujos ataques às tropas de
ocupação israelenses, antes de sua
retirada no ano 2000, haviam prejudicado seus planos de recuperação econômica para o Líbano.
Quanto aos sírios, se ele os tolerava, também tinha planos para a
retirada de seus militares do país.
Seria verdade, como se dizia por
aqui nos últimos tempos, que Hariri era o líder secreto da oposição
política à presença síria?
Qualquer um que visasse assassinar Hariri saberia que tal ato poderia reabrir todas as fissuras da
guerra civil de 1975-1990. Milhares de seus partidários, em prantos, reuniram-se do lado de fora
de seu palácio em Koreitem na
noite de ontem, querendo saber
quem havia matado seu líder. Os
homens de Hariri cruzaram a cidade ordenando aos comerciantes que fechassem suas portas.
Os fantasmas da guerra civil
despertarão de seus quinze anos
de descanso? Eu não sei a resposta. Mas aquela nuvem negra que
flutuou por mais de uma hora sobre Beirute ontem à tarde provocou um obscurecimento sobre
quem estava abaixo dela que ia
além de sua mera sombra.
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