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ARTIGO
Bush perdeu contato com a realidade
Já ficou claro que depor Saddam Hussein se tornou
uma obsessão desligada de qualquer lógica
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PAUL KRUGMAN
DO "THE NEW YORK TIMES"
Nas últimas semanas temos assistido a uma epidemia de epifanias. É longa a lista
dos "sábios" que antes eram a favor da política de Bush com relação ao Iraque, mas que mudaram
de idéia publicamente. Nenhum
deles discute a validade do objetivo -afinal, quem não gostaria de
ver Saddam Hussein fora do poder? Mas eles estão finalmente se
dando conta de que Bush é o homem errado para essa tarefa. Mais
pessoas do que se poderia imaginar -entre elas um bom número
de pessoas dentro do governo-
não estão apenas questionando a
competência de Bush e seus assessores; elas acham que o governo
perdeu contato com a realidade.
Se isso soa muito duro, considere-se o fracasso da diplomacia recente, fracasso esse provocado
por arrogância espantosa e uma
empáfia tremenda.
O círculo mais estreito que cerca
Bush parece ficar espantado pelo
fato de táticas que funcionam tão
bem com jornalistas e democratas
não terem efeito com o resto do
mundo. Eles fizeram promessas,
esquecendo-se do fato de que a
maioria dos países não confia em
sua palavra. Fizeram ameaças. Fizeram aquela coisa da "aura da
inevitabilidade" -quantas vezes
representantes do governo já não
afirmaram ter conseguido os votos necessários no Conselho de
Segurança? Avisaram outros países que, se eles se opuserem ao
"american way", serão objetivamente vistos como pró-terroristas. Mesmo com tudo isso, porém, o mundo hesita.
Será que ninguém no Departamento de Estado consegue dizer
que, em assuntos não militares, os
EUA não são tão hegemônicos assim? Que Rússia e Turquia precisam do mercado europeu mais do
que precisam do nosso, que a Europa dá o dobro da assistência externa que nós e que, em boa parte
do mundo, a opinião pública importa? Ao que tudo indica, não.
Com que objetivo em vista Bush
escavou um fosso
entre nós e todos
nossos aliados
mais valiosos? As
razões originalmente aventadas
para fazer do Iraque uma prioridade imediata já caíram por terra, todas. Nenhuma prova veio à tona
do suposto elo do Iraque com a Al
Qaeda, nem de um programa nuclear iraquiano. Já ficou claro que
depor Saddam virou obsessão
desligada de qualquer lógica real.
Mas o que realmente causa pânico é a irresponsabilidade de
Bush e sua equipe, sua falta quase
infantil de disposição em fazer
frente a problemas que não estão
com vontade de enfrentar agora.
Já escrevi sobre a estranha
passividade do
governo diante
da estagnação
da economia e
da explosão do
déficit orçamentário: ela
não permite
que a realidade
atrapalhe sua
obsessão com
reduções de
longo prazo nos impostos. A mesma atitude de "não me incomode,
estou ocupado" está levando ao
desespero especialistas em política externa do governo e de fora.
Será que preciso chamar a atenção para o fato de que é a Coréia
do Norte, e não o Iraque, que representa um perigo real e imediato? O programa nuclear de Kim
Jong Il não é boato nem fraude.
No entanto o governo insiste em
que essa é uma mera crise "regional" e se nega a falar com Kim.
O "Nelson Report", um influente boletim de política externa, diz:
"Seria difícil exagerar o crescente
misto de ira, desespero, repúdio e
medo que viceja na comunidade
de política externa em Washington, à medida que o ataque ao Iraque se aproxima e que a crise da
Coréia do Norte corre solta, sem
que os EUA formulem qualquer
política coerente. (...) Estamos no
ponto em que a política externa
em geral, e a política com relação
à Coréia, especificamente, podem
tornar-se o "Waco" de George
Bush [referência à precipitada
ação do FBI para desalojar fanáticos religiosos em Waco, Texas,
em 1993; o cerco terminou num
incêndio que matou 86 pessoas].
Desta vez quem está fazendo o papel de David Koresh [o líder da
seita de Waco] é Kim Jong Il (e
também Saddam). Cabeças prudentes e sábias tentam encontrar
uma maneira de penetrar na
mente de George Bush".
Todos nós torcemos para que a
guerra contra o Iraque nos dê
uma vitória rápida, com o mínimo possível de baixas civis. Mas
cada vez mais pessoas se dão conta de que, mesmo que tudo corra
bem num primeiro momento, terá sido a guerra errada, travada
pelas razões erradas -e haverá
um preço pesado a pagar por ela.
Infelizmente, é quase certo que
as epifanias dos sábios vieram tarde demais. O mais provável é que,
quando você ler meu próximo
texto, a guerra já tenha começado.
Tradução de Clara Allain
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