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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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ARTIGO

Bush perdeu contato com a realidade


Já ficou claro que depor Saddam Hussein se tornou uma obsessão desligada de qualquer lógica


PAUL KRUGMAN
DO "THE NEW YORK TIMES"

Nas últimas semanas temos assistido a uma epidemia de epifanias. É longa a lista dos "sábios" que antes eram a favor da política de Bush com relação ao Iraque, mas que mudaram de idéia publicamente. Nenhum deles discute a validade do objetivo -afinal, quem não gostaria de ver Saddam Hussein fora do poder? Mas eles estão finalmente se dando conta de que Bush é o homem errado para essa tarefa. Mais pessoas do que se poderia imaginar -entre elas um bom número de pessoas dentro do governo- não estão apenas questionando a competência de Bush e seus assessores; elas acham que o governo perdeu contato com a realidade.
Se isso soa muito duro, considere-se o fracasso da diplomacia recente, fracasso esse provocado por arrogância espantosa e uma empáfia tremenda.
O círculo mais estreito que cerca Bush parece ficar espantado pelo fato de táticas que funcionam tão bem com jornalistas e democratas não terem efeito com o resto do mundo. Eles fizeram promessas, esquecendo-se do fato de que a maioria dos países não confia em sua palavra. Fizeram ameaças. Fizeram aquela coisa da "aura da inevitabilidade" -quantas vezes representantes do governo já não afirmaram ter conseguido os votos necessários no Conselho de Segurança? Avisaram outros países que, se eles se opuserem ao "american way", serão objetivamente vistos como pró-terroristas. Mesmo com tudo isso, porém, o mundo hesita.
Será que ninguém no Departamento de Estado consegue dizer que, em assuntos não militares, os EUA não são tão hegemônicos assim? Que Rússia e Turquia precisam do mercado europeu mais do que precisam do nosso, que a Europa dá o dobro da assistência externa que nós e que, em boa parte do mundo, a opinião pública importa? Ao que tudo indica, não.
Com que objetivo em vista Bush escavou um fosso entre nós e todos nossos aliados mais valiosos? As razões originalmente aventadas para fazer do Iraque uma prioridade imediata já caíram por terra, todas. Nenhuma prova veio à tona do suposto elo do Iraque com a Al Qaeda, nem de um programa nuclear iraquiano. Já ficou claro que depor Saddam virou obsessão desligada de qualquer lógica real.
Mas o que realmente causa pânico é a irresponsabilidade de Bush e sua equipe, sua falta quase infantil de disposição em fazer frente a problemas que não estão com vontade de enfrentar agora.
Já escrevi sobre a estranha passividade do governo diante da estagnação da economia e da explosão do déficit orçamentário: ela não permite que a realidade atrapalhe sua obsessão com reduções de longo prazo nos impostos. A mesma atitude de "não me incomode, estou ocupado" está levando ao desespero especialistas em política externa do governo e de fora.
Será que preciso chamar a atenção para o fato de que é a Coréia do Norte, e não o Iraque, que representa um perigo real e imediato? O programa nuclear de Kim Jong Il não é boato nem fraude. No entanto o governo insiste em que essa é uma mera crise "regional" e se nega a falar com Kim.
O "Nelson Report", um influente boletim de política externa, diz: "Seria difícil exagerar o crescente misto de ira, desespero, repúdio e medo que viceja na comunidade de política externa em Washington, à medida que o ataque ao Iraque se aproxima e que a crise da Coréia do Norte corre solta, sem que os EUA formulem qualquer política coerente. (...) Estamos no ponto em que a política externa em geral, e a política com relação à Coréia, especificamente, podem tornar-se o "Waco" de George Bush [referência à precipitada ação do FBI para desalojar fanáticos religiosos em Waco, Texas, em 1993; o cerco terminou num incêndio que matou 86 pessoas]. Desta vez quem está fazendo o papel de David Koresh [o líder da seita de Waco] é Kim Jong Il (e também Saddam). Cabeças prudentes e sábias tentam encontrar uma maneira de penetrar na mente de George Bush".
Todos nós torcemos para que a guerra contra o Iraque nos dê uma vitória rápida, com o mínimo possível de baixas civis. Mas cada vez mais pessoas se dão conta de que, mesmo que tudo corra bem num primeiro momento, terá sido a guerra errada, travada pelas razões erradas -e haverá um preço pesado a pagar por ela.
Infelizmente, é quase certo que as epifanias dos sábios vieram tarde demais. O mais provável é que, quando você ler meu próximo texto, a guerra já tenha começado.


Tradução de Clara Allain


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