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São Paulo, sábado, 15 de março de 2003

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COMENTÁRIO

Não à guerra? Diga isso a iraquianos torturados

JOHANN HARI
DO "THE INDEPENDENT"

Imagine a cena: manifestantes tomam as ruas de Washington, Londres, Nova York e Sydney, gritando: "Bush é cabeça oca. Parem a guerra!"; a opinião pública dos EUA muda; Tony Blair, abalado pela resistência dos britânicos, desiste de apoiar a guerra; as tropas dos EUA retornam; as bombas americanas são cuidadosamente guardadas. Virtualmente impossível, é isso o que quer ver a maioria dos ativistas antiguerra.
Você acredita que os iraquianos dançariam nas ruas de Bagdá nesse dia? Você acha que os dissidentes políticos iraquianos -muitos democratas- que apodrecem nas câmaras de tortura de Saddam Hussein derramariam lágrimas de alegria? Pensa que os curdos, que mais de uma vez inalaram gases venenosos, ficariam felizes em ver Saddam livre para desenvolver armas químicas?
É claro que a guerra não será travada para salvar a população do Iraque. Quando Saddam era "o nosso filho da mãe", permitíamos que ele matasse, torturasse e escravizasse o quanto quisesse. A Segunda Guerra Mundial, devemos lembrar, não foi travada para acabar com o Holocausto e salvar judeus, ciganos, comunistas e gays. Winston Churchill não se opunha à morte de pessoas que considerava de "raça inferior". Ele enfrentou Hitler apenas pelos interesses britânicos. Se não fosse esse fato, todos os judeus, ciganos, gays e dissidentes da Europa teriam acabado nas câmaras de gás.
A guerra para derrubar Saddam Hussein será travada pelas razões erradas, mas, quando acabar, seremos gratos por ela ter acontecido. Para ter meu apoio, uma guerra não precisa ser motivada pelos interesses da democracia e dos direitos humanos. O que me basta é saber que o que será construído após a guerra garantirá os pilares da decência.
É legítimo, entretanto, ser cético quanto ao interesse dos EUA em construir a democracia no Iraque. Não é esse o país que descreve Ariel Sharon como um "homem de paz"? Mas não precisamos fazer abstrações sobre as estruturas políticas que substituirão o totalitarismo de Saddam. Há um exemplo claro do que será criado.
Após a Guerra do Golfo, o norte do Iraque -onde os curdos usavam as montanhas para se esconder de Saddam- não foi devolvido a Bagdá. Tornou-se região autônoma, protegida por militares dos EUA e do Reino Unido.
E como está a região dez anos depois? É governada por outro mini-Saddam, um boneco pró-americano? Não. É uma democracia em formação. Elegeu livremente seus próprios governantes. Há liberdade de discurso e de imprensa. É regida pelas letras da lei, aplicadas por juízes e juízas.
Se não fosse pela força militar dos EUA, esse corpo democrático não teria existido nos últimos dez anos. Sem a força militar dos EUA, isso não se estenderá por todo o Iraque. Será que a esquerda realmente esqueceu o princípio fundamental de que vale a pena lutar para libertar 23 milhões de pessoas da tirania e ajudá-las a construir a democracia?

Impedimento moral
Algumas pessoas argumentam que os EUA são moralmente impedidos por sua política externa muitas vezes tirânica de agir no Iraque. Um chileno, palestino ou vietnamita rirá cinicamente da idéia de os EUA serem os libertadores dos oprimidos. Os norte-iraquianos não pensam assim.
Obviamente, os EUA são impedidos moralmente. Gostaria que houvesse um Estado puro e perfeito, sem interesses em petróleo e com força militar para ajudar a população iraquiana. Mas não há.
Lembre-se: nos anos 30, esquerdistas britânicos argumentaram que o Reino Unido estava moralmente comprometido, devido à lamentável ocupação da Índia, e que as razões para entrar na guerra não eram as mais puras. São pontos importantes, mas, se a opinião deles tivesse prevalecido, teríamos perdido tempo debatendo essa imoralidade enquanto judeus queimariam. Não podemos repetir o erro de desviar o olhar daqueles que vivem na prisão aberta do Iraque de Saddam.


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