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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA

Renúncia abala anseio de volta à normalidade num país onde vencedor do 1º turno desiste do 2º

Ópera-bufa derrota sonho de "país normal"

DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Joaquín Morales Solá, o geralmente sóbrio colunista do matutino "La Nación", desespera-se:
"A Argentina será um caso único no mundo em que o ganhador do primeiro turno desiste de disputar o segundo."
Solá está no ar no canal "Todo Notícias", com cara de ponto de interrogação, depois que todos os meios de comunicação anunciaram, ao longo da terça, a renúncia de Carlos Saúl Menem, para serem obrigados a ir recuando minuto a minuto, à medida em que a desistência não se confirmava.
Quebrava-se pela milionésima vez o desejo dos argentinos de ter "um país normal", expressão que se tornou moeda corrente na boca tanto do futuro presidente, Néstor Kirchner, como de uma sociedade saturada de uma história real que parece muito mais uma novela do realismo mágico de Gabriel García Márquez.
Afinal, em que "país normal" o primeiro colocado (ou até mesmo o segundo colocado) desiste na antevéspera do segundo turno?
Em que "país normal" um candidato deixa rolar durante mais de 24 horas o boato da renúncia sem fazer nada nem para confirmá-lo nem para desmenti-lo?
Bem, em "países normais" também não ocorrem ditaduras como a que desgraçou a Argentina no período 1976-83, não se matam 30 mil opositores, não há renúncias sucessivas de presidentes (três dos cinco que ocuparam a Presidência depois da ditadura) e não se dá um desastre econômico como o do período 1998-2001, em que a economia despencou 20%, cifra de países em guerra.
Por isso é tão grande a torcida para que, um dia, a Argentina volte a ser um "país normal". Por isso é tão forte o desespero por ver mais uma ópera-bufa na política.
Agrava o caráter de pantomima do episódio Menem um fenômeno que há também em outros países, o da TV a cabo e seus indefectíveis canais de notícias 24 horas, mas que, na Argentina, são mais disseminados. No restaurante "Fenícia", por exemplo, há uma TV em cada canto do salão.
O obeso de bigodes finos pára o garfo com o naco do incomparável bife de chorizo a meio caminho da boca, na hora em que a TV mostra, pela enésima vez, Menem chegando a La Rioja.
O diálogo é surrealista.
Repórter - O que o senhor tem a dizer aos que fazem apelos para que o senhor não desista?
Menem - Que tenham fé. Quando se perde a fé, se perde tudo.
O repórter, como Solá, também faz cara de interrogação ante a teologia tão simplória quanto absolutamente inútil para explicar o comportamento de Memem.
Os garfos param também a meio caminho quando a TV mostra o goleiro do América de Cali defendendo um pênalti e eliminando o Racing Club, da Argentina, da Libertadores.
É mau agouro. O centenário Racing é o clube preferido de Kirchner. Mas é também uma espécie da parábola das desgraças argentinas. Veste a mesma camiseta em listas azuis e brancas da seleção -nos anos de ouro, conseguiu sete títulos consecutivos, mas, depois, na decadência, ficou 36 anos sem ser campeão (até 2001).
Como a Argentina, o Racing quebrou (em 1998). Mas mantém um público fiel, como a Argentina, capaz de perdoar tudo à primeira vitória.
Mesmo onde não há TV para mostrar a pantomima política ou a nova tragédia do Racing, a discussão dos eventos é um esporte nacional, como acontece nas esquinas da "calle" Florida, o calçadão central da capital.
Frases definitivas são pronunciadas com o vigor emprestado pelo sotaque italianado que caracteriza os portenhos.
Frases que parecem verdades indiscutíveis, na superfície, e que, por isso mesmo, acabam sendo repetidas depois pelos analistas -economistas, políticos, acadêmicos- que transformam os programas de TV e as colunas dos jornais em versão política das mesas-redondas das TVs brasileiras nas noites de domingo.
Uma das frases: "Não creio que tenha importância que um presidente chegue ao poder com 22% dos votos porque o respaldo que tem nas pesquisas é maior", disse ao jornal "La Nación" Oscar Vicente, presidente do importante Instituto para o Desenvolvimento Empresarial da Argentina.
É uma frase comum na Florida e até parece indiscutível, se se aceitar a perigosa tese de que pesquisas são legítimas substitutas para eleições. E se se esquecer que os votos que as pesquisas atribuem a Kirchner não são dele, mas contra Menem, conforme, aliás, mostram as mesmas pesquisas.
A outra tese, comum aos anônimos da Florida como aos não tão anônimos da esquerda, é a de que a renúncia de Menem é uma conspiração do que os argentinos adoram chamar de "poderes fácticos" (os grupos empresariais que, de fato, são determinantes na adoção de certas políticas).
Como desconfiam de Kirchner, querem que assuma com poucos votos, para se tornar mais maleável às pressões, diz a teoria da rua e de setores da esquerda. Pode ser, mas para que conspiração se os "poderes fácticos", ao toque de uma tecla, jogam o dólar para cima ou para baixo e põem de joelhos qualquer governo, ao menos nos países ditos emergentes?
Definitivamente, a mesa-redonda da Florida não é o ponto de encontro de um "país normal". Tampouco é normal um país no qual, na sacada de seu apartamento central, um velhinho sozinho diante da TV explode em superlativo palavrão ao ver Menem, presidente por dez anos, renunciar: "La recontra puta madre que lo parió, hijo de un gran puta".
(CLÓVIS ROSSI)


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